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Meu celular me traiu, me dedurou, quase acabou comigo…

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Por Trajano Pontes | Boletim Antivigilância n.15

E se todas as suas reais ideias, opiniões e intenções sobre as pessoas e os acontecimentos fossem revelados publicamente? Se seus fetiches mais secretos virassem assunto corrente? Se aspectos da sua personalidade, orientação sexual ou traumas ganhassem a rua e as línguas alheias? Toda essa carga enorme de publicidade indesejada pode ser rapidamente sua. Você precisa apenas de um smartphone.

Enquanto escrevo e vocês leem, é provável que, graças aos celulares, novas verdades estejam alcançando pessoas que nunca as deveriam ter conhecido desde a largada. Isso pode acontecer por acidente, pelo uso desleixado das configurações de segurança do aparelho, do sistema operacional ou de aplicativos específicos, ou, mais grave, até pelo uso de sistemas de espionagem disponíveis na internet a qualquer pessoa por preços relativamente baixos.

Mais que isso: é possível que verdades estejam sendo livremente construídas pelos destinatários de mensagens de texto e voz, sobre as quais o emissor tem pouco ou nenhum controle.

Não é preciso ir longe: pegue seu celular e cheque as últimas mensagens que você enviou a seus contatos. Foram todas lidas e respondidas? Alguma delas espera manifestação já há algum tempo? Se sim, como você se sente de verdade em relação a isso? Qualquer traço de angústia? Um teco de ansiedade? É possível que sim. Há quem diga ser da natureza humana, ainda que talvez não haja fundamento para afirmar algo tão categórico. Mas é, seguramente, um hábito muito humano que vamos construindo desde a explosão do uso dos comunicadores instantâneos. Dois tiques confirmando entrega e leitura podem ser um detonador de ansiedade muito eficiente para os espíritos fortes que preferem não desabilitar a função.

Numa tarde de um feriado nacional recente, perguntei aos amigos mais próximos se tinham histórias próprias de como relacionamentos seus haviam sido abalados por causa de interações ou revelações acidentais via celular. As respostas vieram rapidamente e várias delas confirmam uma máxima de vida que deveria virar um mandamento: “Falar mal pelas costas é ventilar o coração. Falar mal na frente constrange quem fala, constrange quem ouve”. Vamos aos fatos, cheios de indiscrições com consequências.

Pensando que falava apenas com sua mãe, Fabiana* revelou a intenção de pedir o divórcio. A mãe tentou acalmá-la, explicando que casamentos passavam por fases complicadas e que ela dificilmente encontraria outro homem tão generoso que sustentasse a ela e ao filho com tanta tranquilidade. Uma visão antiga do casamento? Seguramente, mas não proibida ou incomum na América Latina.

Ocorre apenas que o diálogo se desenrolou em um cenário errado: participavam do grupo de Whastsapp as irmãs e sobrinhas do marido, que haviam sido reunidas ali meses antes para organizar a festa de aniversário do filho do casal. Apesar do descuido de Fabiana, o casal jamais se separou. Não há indício de melhora da relação dela com a família do marido.

Juliana* foi demitida pela primeira vez de um emprego, em uma rádio paulistana, depois de enviar o áudio errado para a pessoa errada. “Por que será que o chefe está com essa cara de cu horrorosa?”, quis saber de um colega. O próprio chefe recebeu o recado, desconversou num primeiro momento e, horas mais tarde, revelou: “A cara de cu vinha dos problemas financeiros da rádio e da necessidade de demitir gente. Você é a primeira, aliás”.

A prima de Clara* dormiu uma noite na casa do namorado, esperando por ele, que avisou que trabalharia até mais tarde. No meio da madrugada, ainda sozinha, viu no tablet dele fotos daquela mesma noite com outras mulheres em um bar, tiradas pelo celular e inconvenientemente sincronizadas com o tablet. Hora de relembrar uma outra verdade quase universal: quem procura acha e o celular talvez seja o lugar perfeito por excelência para descobrir provas de traições. A nuvem de dados comporta todos os tipos de coisas, das mais belas às mais sujas, com atualizações automáticas e frequentes.

Ulisses* e um ex-namorado tiveram uma discussão séria por causa de uma mensagem singela que começava com “saudades de você” (uma forma mais longa de dizer “oi, sumido”), enviada de um número desconhecido e exibida automaticamente na tela do iphone, mesmo bloqueado. Qual a necessidade dessa função e por que as pessoas a usam? Diante das inúmeras possibilidades de as coisas darem errado, a pergunta não parece ter uma resposta positiva satisfatória.

Discussões entre parceiros, demissões e mudança definitiva do status de relacionamento com familiares podem parecer ficha pequena se passamos para a análise de outros casos espalhados pela América Latina e pelo mundo, mas são eficientes para passar uma mensagem clara e direta: diante do celular, esse espião que adora delatar, estamos todos potencialmente vulneráveis.

Vem logo à mente o caso do ator brasileiro Alexandre Borges, que ganhou destaque em sites de fofoca quando rodou pela rede um vídeo íntimo em que ele aparece em um quarto com três mulheres, gravado por uma delas. No Brasil profundo, cuja área infelizmente talvez coincida com o território total do país, o fato repercutiu forte, especialmente por serem elas transexuais.

E pensar que bastaria ter recolhido os celulares das pessoas presentes ou, como cada vez mais fazem em festas bem animadas e liberais, ter tapado a câmera com um pedaço de fita adesiva. Método fácil, bom e adequado para festas modernas e em qualquer outro lugar do mundo fora delas, como não?

Em Bucaramanga, Colômbia, um homem não identificado pela polícia foi preso por ameaçar e roubar o celular do amante de sua parceira depois de os flagrar em um motel. Na origem da visita surpresa estava um celular, dado de presente para a mulher com o GPS ativado (fica aqui uma dica importante: sempre olhar os dentes do cavalo, mesmo quando dado de presente). Por meio do georreferenciamento, o homem que suspeitava da infidelidade conseguiu chegar ao paradeiro do casal e armar o bote.

No Peru, um site de notícias viralizou telas de uma conversa por whatsapp entre um homem e a namorada de um amigo dele. Usando trechos da letra de uma canção romântica malandra, ele insiste até conseguir convencer a mulher a ter uma noite de amor com ele. Ocorre que o celular estaria, na realidade, nas mãos do namorado –e não do amigo-, que somente ao final revela o truque. Um golpe antigo e singelo, mas que ainda parece capaz de fazer vítimas.

A coisa piora ainda mais quando se pensa no uso de softwares de vigilância em relações pessoais comuns, movido apenas por ciúmes ou interesses econômicos. Sobre o assunto, a plataforma Motherboard (do grupo VICE) fez recentemente uma série de matérias chamada “When Spies Come Home“, que apresenta o bastante amedrontador mercado de produtos disponíveis a qualquer stalker que pretenda grampear o telefone de seu parceiro, de seus filhos ou de concorrentes comerciais.

Os programas vêm de fornecedores diversos e às vezes têm as mesmas funções (e usam até o mesmo código) dos softwares de espionagem usados pelos governos ao redor do mundo para vigiar seus cidadãos e estrangeiros. Entre as funções, podem ser citados o acesso do stalker aos contatos da pessoa vigiada, ao conteúdo das chamadas telefônicas e das mensagens de texto e multimídia, ao microfone, à câmera do dispositivo, ao histórico de navegação e a todos os deslocamentos físicos do telefone, via GPS, com precisão de poucos metros.

A contagem de vítimas de espionagem (muitas delas também vítimas de violência doméstica) alcança a casa das centenas de milhares, espalhadas pelo mundo, inclusive por países da América Latina. Os números apontados nas matérias podem ser maiores, já que os dados, obtidos e liberados por hackers, cobrem apenas parte das empresas e produtos envolvidos.

Todo um mundo de possibilidades de mau uso dos celulares lá fora. Boa sorte e cuidado.

*Trajano Pontes, 37, vive em São Paulo, Brasil, passou pelo direito e pelo jornalismo, mas hoje só pensa em livros e filmes