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Hacking feminista: reapropriando códigos, desprogramando corpos

#criptografia #feminismos #violência de gênero

Por Lucía Egaña Rojas | Boletim Antivigilância n.15

Conheci o feminismo muito antes de haver um computador na minha casa. Cresci em um lar cheio de feministas, lésbicas, todas diferentes, e sem nenhum computador. Não existiam computadores portáteis, apenas mulheres nômades. O computador chegou à minha casa para organizar o trabalho feminista da minha mãe, e meu irmão e eu o usávamos de rebote, aproveitando os tempos livres.

Fiquei menstruada, comecei a transar e experimentei algumas drogas, e só muito depois foi que a Internet chegou para conectar essa máquina doméstica de uso comunitário a uma rede que estava lá fora, em todos os lugares. Nessa ocasião, o uso do modem cortava o uso do telefone: quando nos conectávamos à Internet, não podíamos falar ao telefone, havia apenas uma linha de contato com o mundo externo. O modem veio para interromper uma série de conversas telefônicas. A Internet era lenta e rudimentar, e ainda assim parecia mágica. Os freelancers usavam bipes (pagers), um pequeno aparelho que ficava preso ao cinto da calça e enviava textos para avisar sobre chamadas e mensagens urgentes. Nas minhas lembranças, isso era o que havia de mais moderno.

Tudo aconteceu muito rapidamente: apareceram os telefones celulares, o Wi-Fi, o GPS e muitas outras coisas. Minha memória está fragmentada, como um computador que perdeu sua capacidade, pois não me lembro bem o que aconteceu primeiro e o que veio depois. Eu tive um celular enorme que herdei de alguém. Era duro e resistente. Os aparelhos eram maiores e faziam muito menos coisas do que hoje. Alguns anos mais tarde, passei a ser definitivamente uma migrante ao deixar o Chile: tive que abrir uma conta bancária e uma conta de e-mail, comprei meu primeiro notebook, um telefone celular, e voei. Foi pela tangente que conheci o software livre, que ia tomando forma por meio de uma estranha comunidade que se reunia em locais obscuros no centro da cidade. Eles pareciam saber muito, estavam conectados, e tinham prazer em abrir as caixas pretas das máquinas.

Se o feminismo me acompanhou biograficamente ao longo da minha vida, o software livre me ajudou a imaginar novas formas de me relacionar com as tecnologias e serviu também como uma maneira de observar o funcionamento de certas práticas feministas. O acompanhamento e o relacionamento cruzado com ambas as esferas dentro de mim fazem parte do que sou hoje. Com base na minha experiência e em algumas observações sobre esses retalhos entrecortados, quero compartilhar algumas notas e fragmentos.

A MIGRAÇÃO:

Levei muitos anos para migrar. Apesar de estarmos sempre mudando, a mudança de um ambiente para outro, marca a nossa trajetória de uma maneira especial. Pensar as coisas como se fossem caixas que eventualmente poderiam estar abertas, com conteúdos passíveis de serem manipulados, é um processo que nunca termina.

Historicamente, os movimentos feministas buscavam compreender e intervir em certos sistemas operacionais das culturas dominantes, abrindo caixas, mesclando-se, produzindo criações impossíveis, e isso era sem dúvida a maior motivação para iniciar o processo de migração.

Migrar não é fácil, seja para o Linux ou para outro país; é um processo cheio de entraves econômicos, geopolíticos e também emocionais. Mas migrar é também abrir espaço para o autoconhecimento, tanto pessoal quanto coletivo.

DETECTAR FALHAS:

A construção do gênero, precedendo até mesmo a concepção binária do corpo e o que hoje chamamos de “diferença sexual”, ocorre de forma bastante inexplicável. A caixa está fechada: seu funcionamento é opaco. A correspondência unívoca entre o sexo (ditado pelo nosso corpo), o gênero (a forma cultural na qual nos sentimos) e a sexualidade (as práticas e os desejos que nos atravessam) que estabelece o regime heterossexual, dificilmente pode ser compreendida de um ponto de vista que não seja puramente arbitrário. Mas esse sistema, engessado em sua operatividade, cai por terra quando, por exemplo, qualquer uma dessas três variáveis não corresponde às demais. Quando uma pessoa classificada como mulher não se comporta de modo feminino ou não transa com homens, o sistema falha, o maquinário heterossexual falha, trava e, por fim, parece que te castiga.

Do ponto de vista das tecnologias livres, as falhas do sistema (hetero-branco-patriarcal) são oportunidades, indicadores de espaços propícios a intervenções e transformações.

Detectar as falhas de um sistema é acessar uma parte do seu código, ou seja, quando “estressamos” o sistema, detectamos suas deficiências e podemos infectá-lo.

VÍRUS, COMO CONTAMINAR:

Penso que muitos movimentos feministas funcionaram, em grande parte, como um vírus, um elemento disruptivo de códigos e revelador dos seus elementos constitutivos; e, apesar de inúmeras comunidades de software livre estarem compostas em sua maioria por homens misóginos, o fato estrutural que levanta a possibilidade de acessar os códigos continua inevitavelmente sendo uma questão feminista. É acessando e nos reapropriando dos códigos que programaram nossos corpos e subjetividades que podemos desaprendê-los. Trata-se de práticas autônomas e anticapitalistas, independentes das macrocorporações, independentes dos desejos que o mercado cria em nossos corpos e corações.

Os vírus se espalham de forma desorganizada, multiplicam-se sem que seu crescimento possa ser previsto. Eles nos penetram e se infiltram, mas, como nós mesmas somos os vírus, nós os apreciamos. Nós gostamos dos vírus porque tê-los significa estarmos desaprendendo nossa configuração padrão, de fábrica, com a qual fomos programadas antes de nascermos, sem que a tivéssemos escolhido.

REPROGRAMAÇÕES:

Penso em todos os consertos feitos por mulheres, meio-mulheres e dissidentes ao longo da história. Esses irrompimentos que gravitam e emergem de todas as partes, que tantas vezes foram invisibilizados, ocultados pelos códigos convencionais da programação hegemônica. As reprogramações estão muito mais próximas do que poderíamos pensar, estão em nossos corpos, nas relações com os outros, na micropolítica do cotidiano. Não devemos subestimá-las.

OS ANTIVÍRUS:

Nós sempre programamos, desprogramamos, interviemos e reconfiguramos, mas a pergunta hoje é como seguir fazendo isso. Viajo com um notebook e um smartphone para todos os lugares. Carrego centenas de GB comigo aonde quer que eu vá. Armazeno dados e os produzo a uma velocidade inimaginável, até para mim mesma. Muitas dessas informações continuam circulando pelas casas dos poderosos, por seus canais, redes e plataformas. É possível gerar ruído nesses canais, mas, provavelmente, não é possível destruí-los. A Internet é uma faca de dois gumes. Sem percebermos, estamos trabalhando para eles, só que de graça. Nossos dados são muito simbólicos, mas economicamente quantificáveis, e os fornecemos às macrocorporações como se estivéssemos nos tempos feudais. Estamos parindo filhos com a genética do código binário e nenhum marxista está muito preocupado com isso, eles nunca se preocuparam com isso…

COMO SEGUIR PROGRAMANDO:

É difícil imaginar um futuro para um espaço feminista que está sendo deslavado pelo capitalismo. Embora trabalhemos ou tenhamos algum acesso às tecnologias, as diferenças estruturais continuam aumentando. Parece até haver mais violência e mais segregação por raça, classe, sexualidade e gênero. 80% das mulheres trans na América Latina morrem antes dos 35 anos.

É importante que cuidemos umas das outras, e compartilhar informações, experimentar novas formas de nos organizarmos e de desordenar nossos corpos continua sendo urgente. É preciso recuperar saberes não científicos, devolver às bruxas, às acompanhantes, às amigas e às amantes o que lhes foi extirpado. Precisamos reconhecer nossos corpos como campos de batalha expropriados pelos estados-nação, pela indústria farmacêutica e pelos discursos médicos oficiais, para criar espaços de resistência internamente, dentro dos nossos corpos, e externamente, além da nossa rede.

Apesar de todas as ameaças, nós somos muitas, e o único problema é que às vezes não nos conhecemos. Precisamos de espaços para encontros e conspirações, espaços físicos e outros. Precisamos de narrativas que recriem os lugares imaginários que também nos foram tirados; precisamos programar histórias e fantasias, sermos pontes que nos conectem com nosso próprio poder, e, como diria Kate Rushin, mediar nossas próprias fraquezas, sermos pontes para lugar nenhum e, por fim, sermos úteis.
* CC (by-sa-nc) 2017

Lucía Egaña Rojas (Chile, 1979) tem formação em artes, estética e documentários e é doutora em Comunicação Audiovisual pela Universidad Autónoma de Barcelona. Escreve e pesquisa sobre feminismos, transfeminismo, pós-pornografía, software livre e erros de sistema.