Whatsapp Pay: A próxima fronteira para ampliação de monopólio de dados

#Colonialismo Digital #direito do consumidor #direitos econômicos #Monopólio das Big Tech #proteção de dados

Estudo realizado pela Coding Rights analisou a implementação do Whatsapp Payment no Brasil. O país é o segundo no mundo onde a empresa testa o serviço(Colonialismo de dados?). O caso chama atenção porque mostra a necessidade de cooperação entre autoridades regulatórias para poder lidar com monopólio das Big Tech. Proteção de dados não é suficiente, é preciso somar os instrumentos de lei de concorrência, direito do consumidor, leis setoriais, ou seja, ampla complexidade.

Por Vanessa Koetz, Bianca Kremer e Joana Varon

Em 30 de março de 2021, o Banco Central do Brasil (BCB) aprovou a entrada do Whatsapp Pay no país. Um sistema de transferência de recursos por meio do próprio Whatsapp sem pagamento de taxas bancárias. O foco são pequenos pagamentos, sendo que são permitidas até 20 transações por dia de até R$ 1.000 por transação, com limite mensal de R$ 5.000. Inclusive, o governo do Estado de São Paulo chegou a anunciar que passageiros de metrô e ônibus poderiam pagar a passagem do transporte público via Whatsapp.¹

A funcionalidade já tinha sido lançada em junho de 2020, mas foi suspensa por tempo indeterminado poucos dias depois, a mando do Banco Central do Brasil e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A empresa foi ameaçada de multa de R$500.000 por dia caso não suspendesse o serviço. O que mudou desde então?

No segundo semestre de 2021, cerca de 120 milhões de pessoas, 60% da população, usavam o Whatsapp como aplicativo de mensagens no país.² O Whatsapp já é o único app de chat no país que tem acordos de zero-rating com as operadoras de telefonia, ou seja, pode ser acessado sem cobrança pelo tráfego de dados para acessar o app, sem custo no consumo da franquia dos planos de conexão de internet. Razão que contribui diretamente para o monopólio de mercado desse app e que limita o acesso a outros apps de mensageria, principalmente por parte de camadas mais empobrecidas da população, que dependem do acesso à rede por planos pré-pagos e com planos de dados menores. Agora, o Brasil é o segundo país a testar esse serviço de pagamentos. O primeiro foi a Índia, país que com mais de 400 milhões³ de pessoas usando o app em 2021, é onde ele tem mais consumidores no mundo. Não por acaso, os testes-piloto são implementados em enormes mercados do app no mundo situados em países distantes da sede da empresa. Para além de cunharem o termo “usuário” para denominar quem utiliza um determinado software -, denotando o desejo das empresas do Vale do Silício de fomentar vício, adição e dependência no uso de seus produtos -, no lugar de nos tratar simplesmente como consumidores e consumidoras, palavra que denota direitos, ao que tudo indica, como cidadãs e cidadãos de países com menor poder de aplicação da lei sobre as práticas dessas empresas do que tem seu país de origem, também somos vistos como cobaias para ajudar ampliar o monopólio do Facebook, agora denominado Meta, assim como as ambições megalomaníacas da empresa.

Não é a primeira vez que a empresa trata pessoas de países fora do Norte Global e da periferia da economia mundial de maneira diferente. Recentes alterações na política de privacidade do app demonstraram de maneira tangível as assimetrias de poder na geopolítica da proteção de dados, uma vez que a mudança não se aplicava na Europa, mas nos demais países visava, entre outras coisas, restringir o acesso de pessoas que não aderirem à nova política, que incluía explicitar o consentimento para o compartilhamento de dados do app com o Facebook. No Brasil, a mudança em sua política de privacidade foi questionada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) que, entre outras recomendações, solicitaram o adiamento da mudança, programada para março de 2021 e algumas restrições nas mudanças.

Na verdade o Whatsapp Pay funciona via Facebook Pay, ou seja, para a ativação desta funcionalidade, torna-se necessário justamente o compartilhamento de dados cujo consentimento está sendo questionado pela mudança de política de privacidade. E, com isso, o Whatsapp/Facebook, com todo seu histórico de violação de proteção de dados pessoais, passam a ter acesso ao nosso CPF, dados bancários, nossas transações bancárias associadas à nossa lista de contatos, além de número de celular e pode cruzar esses dados com nossos usos de redes sociais e de localização. Nunca um banco ou operadora de cartão de crédito teve tanta informação sobre nós. Estamos fornecendo tudo isso para uma empresa cujo modelo de negócio é a publicidade.

Como funciona tecnicamente esse serviço? Como tem sido a implementação desse sistema no Brasil? O que mudou da decisão inicial do CADE para cá? Esse novo serviço serve como forma de se contrapor à indicação de órgãos reguladores contra alterações na política de privacidade? Que questões de segurança emergem com o serviço? Muito mais do que a análise de mais um serviço da empresa, a questão de fundo é que, pouco a pouco, para além de deter uma situação de monopólio de meios de comunicação digitais, o Facebook, agora Meta, parece visar expandir seus domínios para configurar um monopólio ainda mais amplo, agora focado em meios de pagamento, fazendo frente até a grandes bancos, principalmente se considerarmos o poder que a empresa tem no que diz respeito ao acesso a nossas informações e hábitos. Existem respostas possíveis no Direito Concorrencial que dariam subsídio à proteção de Direitos Humanos nos meios digitais? E, para além de regras de concorrência, quais os limites são possíveis de se impor ao capitalismo de plataforma e às práticas de colonialismo de dados dessas grandes empresas de tecnologia? Quem fica mais vulnerável a essas práticas? Quem lucra? Quem perde nesse arranjo produtivo neoliberal e global das Big Tech? Mesmo se esse serviço não deslanchar como espera o Facebook/Meta, quais limites foram impostos para uma empreitada semelhante?

Metodologia

Essas são apenas algumas das várias perguntas que uma iniciativa como essa faz emergir e sobre as quais este estudo pretendeu se debruçar.

Para responder a essas questões, a metodologia desenvolvida abrangeu desk research, análise dos autos do processo CADE nº 8700.002871/2020–34⁴, análise dos termos de serviço e políticas de privacidade dos serviços Facebook/Whatsapp, análise de processo de pedido de acesso à informação elaborado pela Coding Rights ao Banco Central do Brasil e realização de entrevistas focais com atores chave para entendimento do funcionamento e dos impactos potenciais da implementação desse sistema.

De uma perspectiva feminista, o estudo começa com uma contextualização tecnopolítica do WhatsApp, do Facebook (Meta) e do lançamento do WhatsApp Payment no Brasil, dominando mercados e subjetividades e se consolidando o grupo Meta como monopólio no mercado de apps de mensageria em busca de uma nova expansão de fronteira, a entrada no setor de serviços financeiros. Em seguida, passamos a identificar o cenário turbulento do lançamento da ferramenta de pagamentos do Whatsapp no Brasil, o processo de autorização da Facebook Pagamentos do Brasil como instituição Iniciadora de Transação de Pagamento junto ao Banco Central do Brasil e a forma de funcionamento do WhatsApp Payment, seus termos de serviço e políticas de privacidade. Sob uma perspectiva decolonial enfatizamos o uso dos países do Sul Global, como Brasil, Quênia e Índia como laboratórios de implementação de políticas monopolistas da big tech. Por fim, sob a perspectiva do direito concorrencial, realizamos uma análise sobre o processo de apuração de ato de concentração instaurado pelo Cade e da legislação financeira adequada ao serviço de iniciação de transação de pagamento.

O que encontramos?

Os novos modelos de negócio provenientes das grandes empresas de tecnologia alteram sobremaneira o escopo de análise de autoridades concorrenciais como o CADE e, no caso, das big tech no mercado de pagamentos, dos reguladores do sistema financeiro, como o Banco Central do Brasil.

Enquanto os bancos e fintechs são criados para operar prioritariamente os serviços financeiros, esses serviços são uma pequena parcela do que oferecem as big techs. Mas a natureza da atividade de iniciação de transação de pagamento, per si, é de uma atividade que envolve essencialmente transmissão de dados e informações de transação, atividades que estão no coração do modelo de negócios dessas empresas.

Ainda que o discurso da eficiência do big data seja questionável, é uma narrativa atrativa para investimentos e consumidores. E não se pode negar que a grande dimensão das bases de dados que as big tech detêm aumenta seu poder competitivo na sociedade da informação e as posiciona em lugar único diante de iniciativas menores. A entrada dessas empresas no mercado de pagamentos e em outros elementos do sistema financeiro contribui com esse ciclo repetitivo (loop) de geração de dados. Se antes o Facebook, por meio de seus diversos produtos, coletava dados da rede social dos usuários, agora, passa a coletar também dados financeiros. A possibilidade de cruzamento de diversas bases pertencentes à empresas, com vistas a ampliar a sua base de consumidores e criar novos modelos de negócio é enorme — por ex., há de se perguntar o que impede a empresa de oferecer um serviço de crédito a partir de um sistema de pontuação ultra rápido que entrelace a base massiva de dados de redes sociais, com o fluxo informacional coletado nas transações financeiras? Na China, para além de redes sociais, o WeChat já domina mercados de pagamentos, por meio do WeChat Pay, juntamente com a Ali Pay, braço financeiro da Alibaba, versão chinesa das concorrentes ebay e Amazon.

No Brasil, o Whatsapp Pay, por enquanto, ficou limitado a transações entre pessoas e não entre pessoas e negócios. Ainda assim, mesmo que não saibamos se o Whatsapp quer se tornar um “super app”, como o chinês WeChat, é possível afirmar que a funcionalidade do Whatsapp Pay é mais um passo para aumentar o monopólio de dados que o Facebook detém sobre Brasil e Índia.

A entrada dessa big tech nos serviços financeiros sugere possibilidades de maior inclusão financeira, já que o Whatsapp tem enorme penetração e chegam a lugares e públicos que os bancos tradicionais não chegaram (ou talvez não quiseram chegar). Inclusão financeira, dentre outros, significa acesso a oportunidades de crédito e educação e gestão financeira para o uso consciente de recursos, por ex., e contribui para a inclusão social, especialmente, em contexto de miséria que marca países como Brasil, Índia e Quênia, em que milhões de pessoas não cumprem requisitos para abrir uma conta no banco que exige diversos documentos. Contudo, devemos nos perguntar: a que custo?

Ao mesmo tempo em que poderia facilitar a inclusão nos serviços financeiros, a Meta/Facebook aumenta ainda mais sua consolidação no mercado de dados e a exploração desse enorme poder de mercado pode resultar em práticas abusivas com favorecimento de seus próprios serviços e produtos, imposição de dificuldades e barreiras para a entrada de outros competidores e, a partir de sua hegemonia no mercado, a diminuição da qualidade de seus serviços — como as interrupções na prestação de serviço, que já são notadas no Brasil. Tornam-se, portanto, um monopólio de dados.

A soma da coleta de dados financeiros, com a massiva base de dados de redes sociais e a gigantesca base de usuários que possui o Facebook, aliado à inteligência artificial e ao aprendizado de máquina, aumentam o poder preditivo dos sistemas dessa empresa e podem interferir na modulação de comportamento do usuário/consumidor — como já foi constatada a prática nas eleições norte-americanas.⁵

Há uma lacuna regulatória sobre a entrada dessas empresas no Sistema Financeiro Nacional. As big techs não são bancos ou fintechs, que têm sua principal e quase exclusiva atividade no mercado financeiro. Elas detêm outras formas de fazer negócios que é baseado em coleta massiva de dados. O foco tradicional na competição relacionado a um único mercado, como vimos, é insatisfatório. Primeiramente, é necessário nortear as ações a partir da perspectiva de que sistema financeiro é infraestrutura de interesse público e essencial e atua para a promoção de inclusão financeira e social. Em segundo lugar, é necessário deixar que haja apenas uma abordagem econômica e que haja integração regulatória e fiscalizatória entre os campos de competição, de sistema financeiro, de privacidade e proteção de dados e defesa do consumidor.

Além disso, não existe uma solução única universal para a questão, afinal as big techs não estão em apenas um país e, sem dúvida, se faz necessária uma coordenação nacional e internacional das atividades de formulação, regulação e fiscalização relacionadas às big techs no mercado financeiro, especialmente entre os países fora do eixo do Vale do Silício.

A economia digital, como um todo, tem trazido desafios para o controle de notificação de atos de concentração, trazendo ramos considerados novos para o direito até então, sobretudo aqueles relacionados ao mercado digital.⁶

Muitas vezes, empresas de tecnologia possuem baixos faturamentos, e sequer atingem os critérios legais para tornarem as operações de notificação obrigatória à autoridade antitruste. No caso do WhatsApp, trata-se de um aplicativo que não veicula anúncios (ADs) e é “gratuito” para os usuários no geral (à exceção de contas comerciais com os novos Termos de Serviço), mas que possui ativos intangíveis com alta perspectiva de geração futura de caixa e precificação subjetiva.

A operação de compra do WhatsApp pelo Facebook em 2018 foi um grande exemplo de como o enfoque das autoridades concorrenciais em eficiência alocativa de recursos, de forma estrita, se mostra insuficiente para lidar com os desafios de poder econômico que as grandes plataformas digitais, hoje, apresentam. Como o WhatsApp não atingiu os critérios de faturamento no ano de 2017, a operação⁷ quase escapou à análise da Comissão Europeia, não fosse o seu enquadramento nos critérios de notificação obrigatória de três dos seus Estados-Membros.

Dos pontos concorrenciais abordados pela Comissão Europeia,⁸ houve especial enfoque no intercâmbio de dados coletados entre as empresas, o que não ocorreu no caso brasileiro da APAC do CADE entre WhatsApp e Cielo, cujo epicentro de análise foi a inexistência de empreendimento comum para exploração de atividade econômica entre as partes.

É importante mencionar também que muitas das informações solicitadas pela Superintendência Geral no caso brasileiro foram de cunho sigiloso, tais como a relação de todas as empresas integrantes dos dois grupos econômicos, seus faturamentos brutos e a soma dos faturamentos das empresas pertencentes ao grupo Meta/ Facebook. E essa é uma tendência bastante presente nas análises do CADE, com observância a uma falta de transparência expressiva em relação ao que motivaria evitar a publicidade de informações de interesse público.

Ademais, os critérios de notificação obrigatória no Brasil são previstos no art. 77, §7º, da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), artigo 88, §7º da Lei de Defesa da Concorrência que faculta ao CADE requerer, extraordinariamente, a submissão de qualquer operação à sua análise. Mesmo aquelas que não atinjam os parâmetros de faturamento mas, ainda assim, possam prejudicar a dinâmica competitiva do mercado.

Aliado a isso, o art. 173, §4º, da Constituição Federal estabelece que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise a dominação de mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário de lucros. De acordo com Bruno Braz de Castro,⁹ esses termos denotam uma preocupação com a manutenção da estrutura da concorrência e o combate a abusos exploratórios. A Constituição é precisa em estabelecer que o princípio da livre concorrência convive harmonicamente — e horizontalmente — com outros princípios constitucionais da ordem econômica, tais como redução da desigualdade social, função social da propriedade e tratamento favorecido à pequena empresa. Razão pela qual a finalidade do direito da concorrência brasileiro deve ser legitimada sob o marco da justiça social, em prol de objetivos como o desenvolvimento econômico e a redução das desigualdades sociais e regionais.¹⁰

A defesa da concorrência é também um dos instrumentos, não o único, para assegurar uma existência digna, conforme os ditames da justiça social,¹¹ razão pela qual os mercados virtuais de plataforma precisam estar no radar de autoridades como o CADE e, no caso, por se tratar de mercados de pagamentos, o Banco Central do Brasil. São frequentes as políticas de fusões e aquisições, sobretudo por parte de Big Techs, com a incorporação predatória de startups com potencial de ameaça à sua posição dominante. Se o Meta/ Facebook é hoje uma mídia social considerada um dos gigantes da indústria de tecnologia, isso se dá muito por força da sua postura de dominação das ameaças competitivas emergentes, como é o caso da aquisição do WhatsApp e outras empresas do grupo, a exemplo do Instagram. Autoridades concorrenciais alheias a esse panorama econômico, social e político empreendido pelo capitalismo de plataforma, são verdadeiros catalisadores desse processo.

As posições dominantes em mercados virtuais de plataformas demandam uma enérgica atenção antitruste, e o direito da concorrência precisa ir além de questões relacionadas à eficiência alocativa de recursos para dar conta desses novos desafios. É necessário que ele se volte à efetividade do processo competitivo como um todo pois, no contexto das plataformas digitais, uma concorrência bem-sucedida pelo mercado tende a não enfrentar uma concorrência substancial no mercado.¹²

Nesse sentido, uma parceria como WhatsApp e Cielo pode não apresentar, à primeira vista, a presença de um empreendimento comum de mesma atividade econômica, ou exclusividade contratual. Mas a concentração de poder econômico ganha outros contornos à medida que se reconhecem os efeitos exclusionários empreendidos pelo Meta/Facebook no contexto de sua hegemonia de mercado. Existe efetivamente algum concorrente real para uma empresa como o Meta/ Facebook, no cenário global, com quem a Cielo poderá fechar acordo de parceria de maneira vantajosa e verdadeiramente competitiva? Existe algum serviço de mensageria semelhante ao WhatsApp no cenário nacional, com o mesmo — ou similar — alcance e relevância?

O CADE, enquanto importante autarquia estratégica para manutenção do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, precisa desferir atenção redobrada ao abuso de poder de mercado empreendido por plataformas digitais que, além da absorverem negócios rivais, empreendem poder regulatório de achatamento da lucratividade de determinados produtos/ serviços como estratégia de manutenção de sua posição de liderança.¹³

Os princípios constitucionais da ordem econômica não apenas permitem, como se fundamentam na necessidade de olhares sóbrios sobre a realidade brasileira. Para tanto, é fundamental a ponderação detida sobre o monopólio de dados no contexto concorrencial, e os obstáculos à contestabilidade dessa hegemonia de mercado conquistada por Meta/ Facebook que se estende ao mercado de meios de pagamentos digitais, por meio do WhatsApp Pay. Não é por menos que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) prevê em seu artigo 2, inciso VI, que “a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor” são fundamentos da proteção de dados pessoais.

Sugere-se a adoção de uma postura crítica em relação ao pretenso discurso de neutralidade que circunda o critério da eficiência econômica, amplamente utilizado nas análises concorrenciais no Brasil. Decisões como a da APAC do CADE no caso WhatsApp Pay possuem uma roupagem aparentemente científica, objetiva e puramente técnica que, na verdade, invisibilizam o aspecto ideológico neoliberal que fundamenta o próprio conceito de efeitos anticompetitivos para o CADE, a serem levados em consideração para suspensão a operação em caráter cautelar.

Recomendações

Dada a complexidade do tema, que envolve um modelo de negócio cujo foco é fluxo informacional dentro do sistema financeiro há necessidade de abordagem multissetorial para a análise da entrada das big techs no sistema financeiro, que abranja além do direito do sistema financeiro, ao menos, o direito concorrencial, o direito consumerista, e direitos relacionados à privacidade e à proteção de dados.

Dentre algumas das recomendações centrais inferidas a partir das informações obtidas no presente estudo, algumas ganham maior destaque. São elas:

  1. Reforço do CADE, enquanto autoridade brasileira da concorrência, no trato com as grandes plataformas digitais. A Alemanha apresentou um exemplo interessante em novembro de 2021, quando propôs o Acordo da Coalizão Alemã sobre os Direitos Digitais (German Coalition Agreement on Digital Rights). Os integrantes expressaram um forte apoio à regulamentação de plataformas pela União Europeia, adotando uma posição firme em favor da restrição do uso de tecnologias de vigilância pelo governo. Dentre as especificidades, houve a sugestão de reforço ao Bundeskartellamt (autoridade da concorrência alemã) perante plataformas digitais e de direito do consumidor. A atualização das leis de competição para enfrentar os desafios trazidos pela nova economia digital, sobretudo em relação ao processo de plataformização nas relações econômicas, é um ponto central para a proteção dos direitos fundamentais dos usuários e consumidores no ambiente digital. Nesse sentido, é importante observar o processo europeu acerca da aprovação do Digital Markets Act (Lei dos Mercados Digitais) que pretende regulamentar a atuação das big techs, impondo limites à sua atuação, bem como reprimir práticas anticompetitivas.¹⁴
  2. Necessidade de cooperação entre autoridades, com elaboração de termos de cooperação, especialmente entre Banco Central do Brasil (BCB) e Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O acordo de cooperação técnica firmado entre CADE e ANPD em 2021 teve como objetivo central a cooperação interinstitucional em casos de infração à ordem econômica envolvendo o uso e compartilhamento de dados pessoais. No cenário da economia digital e do capitalismo de plataforma, cada vez mais as Big Techs têm tirado proveito da reserva de mercado adquirida durante longos períodos sem a presença de um olhar mais detido por parte das autoridades sobre a necessidade de regulação das suas atividades. Mais do que nunca, a promoção conjunta e coordenada de autoridades como ANPD e Bacen se mostra de imperiosa relevância para a efetiva proteção dos direitos fundamentais dos usuários, agora no contexto do Open Banking. Mais precisamente, sobre os critérios a serem adotados para atuação como meio de pagamentos digitais. Temos muitos desafios a enfrentar nesse campo. Isto porque, observamos uma intensa robustez por parte do Bacen no campo da regulação da ordem econômica. Enquanto, por outro lado, temos uma sociedade ainda caminhando para a construção de uma cultura de proteção de dados no Brasil, com uma Autoridade Nacional recém estruturada para dar conta de inúmeras adversidades a porvir. Nesse sentido, é importante observar, a exemplo do termo de cooperação técnica entre ANPD e CADE que, cada vez mais, será necessária a promoção conjunta e coordenada de ações entre as instituições brasileiras para o combate a atividades lesivas à ordem econômica, sobretudo diante dos desafios impostos pela economia digital.
  3. Necessidade de cooperação internacional entre agentes reguladores e fiscalizadores, especialmente dos países do Sul Global, a fim de contrabalancear o monopólio internacional. As autoridades brasileiras têm adotado uma concepção bastante reducionista sobre o que, de fato, configura a existência de monopólio e prejuízo à concorrência no contexto da economia digital, ignorando considerações sobre o capitalismo de plataforma e o colonialismo de dados como importantes motores de pulsão e perpetuação da posição de liderança desempenhada pelas Big Techs no mercado de tecnologia. No contexto de uma sociedade hiperconectada e global, é importante observar que a distribuição de produtos e serviços digitais não se dá de forma desarrazoada. O que se observa, por exemplo, a partir das discrepâncias na mudança dos termos de serviço do WhatsApp no Brasil/ Índia, perante a situação dos países integrantes da UE. Os primeiros tiveram condições muito mais permissivas e abusivas no fornecimento do produto/serviço em comparação aos demais. Existem condições que precisam ser levadas em consideração quando pensamos nos impactos dos serviços fornecidos aos países do sul-global pelas Big Techs, que são empresas de poder de mercado consolidado em escala mundial. Eles detêm uma posição histórica herdada de vulnerabilidade e subserviência econômica e tecnológica perante os países do norte global. Questões de cunho prático como acesso à internet, conectividade, inclusão, e as assimetrias de gênero e suas interseccionalidades não são triviais, e ganham outros contornos no contexto no monopólio internacional, que se dá na Economia muito a partir dos dados pessoais, pois são o insumo das atividades dessas empresas. O colonialismo de dados, portanto, carece de olhares detidos sobre o contexto geopolítico de países em situação de vulnerabilidade social como o Brasil, razão pela qual elevar tais discussões no âmbito da cooperação internacional pode fortalecer sobremaneira a atuação dos agentes reguladores e fiscalizadores no Brasil e no mundo, e permitir uma efetiva agenda de proteção aos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos digitais nesse tortuoso, atual e, mais do que nunca, necessário debate sobre as imbricações entre a oferta de serviços plataformas digitais e serviços bancários.

O estudo completo está disponível no link: https://codingrights.org/docs/ZapPay_monopolio_dados.pdf

Um resumo da pesquisa em inglês está disponível em: https://medium.com/codingrights/whatsapp-pay-the-next-frontier-for-the-expansion-of-data-monopoly-360139de44ad

Ilustração: Clarote para a Coding Rights

Notas de Rodapé

¹ Vai de Pix! Usuários de SP e Salvador já podem pagar o transporte público digitalmente (Pay with Pix! SP and Salvador users can now pay for public transportation digitally). Available at: https://www.tudocelular.com/tech/noticias/n175288/transporte-publico-comprar-passagens-via-whatsapp.html. Acesso em 20.12.21.

² Números atuais do WhatsApp no Brasil e o potencial do app para negócios https://www.messengerpeople.com/pt-br/whatsapp-no-brasil/#:~:text=Com%20quase%20120%20milh%C3%B5es%20de,meio%20predileto%20para%20mandar%20mensagens. Acesso em 20.03.22

³ WhatsApp may soon touch 500 million users in India despite new privacy policy, claims report. Available at: https://www.indiatoday.in/technology/news/story/whatsapp-may-soon-touch-500-million-users-in-india-despite-new-privacy-policy-claims-report-1758344-2021-01-12. Acesso em 20.12.21.

⁴ Autos do processo CADE nº 8700.002871/2020–34. Disponível em: http://antigo.cade.gov.br/noticias/cade-suspende-operacao-entre-facebook-e-cielo-que-pretende-viabilizar-pagamentos-por-whatsapp ; e https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcd6juAcG4lOuo5l7Q6DB__lNwxVag-pmGL_BqLKh0XV7. Acesso em 14.01.2022

⁵ OLIVEIRA, Rafael and RUDNITZKI, Ethel. Como o Facebook está patenteando as suas emoções (How Facebook is patenting your emotions). Galileu Magazine. 10/06/2019. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Tecnologia/noticia/2019/07/como-o-facebook-esta-patenteando-suas-emocoes.html . Acesso em 20.12.2021.

⁶ ARRUDA, Vivian Anne Fraga do Nascimento; PINEDO, Paula; MONDECK, Luisa Pereira. Direito antitruste & inovação: mercados digitais envolvendo tecnologia disruptiva e análise antitruste. In: Mulheres no Antitruste. MACEDO, Agnes et. al (Org.). São Paulo: Ed. Singular, 2018, p. 37.

⁷ Decisão da Comissão Europeia no Case No. Comp/M.7217 — Facebook/WhatsApp. Disponível em: https://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m7217_20141003_20310_3962132_EN.pdf. Acesso em 21.12.2021.

⁸ ARRUDA, Vivian Anne Fraga do Nascimento et al. Op. cit. p. 38.

⁹ CASTRO, Bruno Braz de. A que(m) serve o antitruste? Eficiência e rivalidade na política concorrencial de países em desenvolvimento. Editora Singular. São Paulo, 2019. Disponível em: https://editorasingular.com.br/Uploads/Indice/Sumario_A_%20quem_serve_o_Antitruste_site.pdf. Acesso em 21.12.2021.

¹⁰ CASTRO, Bruno Braz de. A que(m) serve o antitruste? Op. cit. p. 169.

¹¹ FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 186.

¹² CASTRO, Bruno Braz de. A que(m) serve o antitruste? Op. cit. p. 132.

¹³ HUBBARD, Sally. The case for why Big Tech is violating antitrust laws. CNN Business perspective. 02/01/2019. Disponível em: https://edition.cnn.com/2019/01/02/perspectives/big-tech-facebook-google-amazon-microsoft-antitrust/index.html. Acesso em: 22.12.2021.

¹⁴ ​​ ​​ARONSSOHN, Daniel. UE fecha acordo para regulação ambiciosa de big tech. O Estado de São Paulo. 24/03/2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2022/03/ue-fecha-acordo-para-regulacao-ambiciosa-de-big-techs.shtml. Acesso em: 20.03.2022.