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Tecnologia e arte como redes táticas de defesa contra a violência

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Por Tiago Rubini | Boletim Antivigilância n.14

O Quênia é um dos países da África com altíssimos índices de violência de gênero e sexualidade. Num questionário feito pelo projeto Pew Global Attitudes and Trends no ano de 2007, por exemplo, foi constatado que 96% da população entrevistada acredita que a homossexualidade não deveria ser aceita socialmente como um estilo de vida no país.

A forte perseguição exige que dissidentes de gênero e sexualidade do Quênia procurem formas estratégicas de se comunicar online e offline. Vestígios de estilos de vida trans* e não-heterossexuais podem resultar em todos os tipos de violência, desde demissões compulsórias até estupros corretivos. Uma das soluções que a comunidade encontrou foi adotar apelidos para se comunicar entre si pela internet e, por efeito, fortalecer redes offline de confiança. De qualquer forma, o risco de violência continua muito significativo.

As tecnologias de informação e comunicação pelo desenvolvimento, conhecidas como ICT4D (Information and Communication Technologies for Development), consistem em estratégias digitais de desenvolvimento socio-econômico e aplicabilidade de direitos humanos em contextos de vulnerabilidade para grupos oprimidos. Um estudo feito pelo Tactical Technology Collective, porém, diz que as interfaces destinadas ao uso estratégico de pessoas de baixa renda, racializadas e dissidentes de gênero e sexualidade do Quênia, nem sempre contribuem efetivamente para a resolução dos problemas sociais que elas visam combater. Como, então, garantir que essas soluções sejam aplicadas de modo satisfatório?

Dois casos de redes digitais desenvolvidas para defender pessoas com esse perfil em Nairobi foram analisados pelo estudo do TTC. O primeiro, Utunzi, se define como uma plataforma que sustenta uma base de dados sobre atos violentos contra a população LGBTIQ e procura viabilizar atendimentos de emergência a vítimas, entre outras iniciativas. O Speak Out combate chantagistas que ameaçam expor publicamente indivíduos que, por segurança pessoal, não podem se dar ao luxo de sair do armário. Em relação a ambos os casos, o TTC foi categórico: foi necessário que a comunidade participasse ativamente do desenvolvimento das interfaces para elas funcionarem de modo satisfatório, desafiando inclusive a autoridade de quem as idealizou na aplicabilidade do projeto, por exemplo questionando se existe complacência com as políticas de nomes reais aplicadas por redes sociais.

Não há como proteger pessoas marginalizadas sem criticar o status quo. Grupos particularmente vulneráveis à violência nas suas diversas formas precisam viabilizar as suas existências em soluções autônomas. As instituições que deveriam os amparar muitas vezes reforçam práticas e discursos que ameaçam a sua integridade, daí a importância de se elaborar estratégias de organização, comunicação e disseminação de conhecimento feitas por eles próprios.

O projeto Autonets, de Micha Cárdenas, atua neste sentido. Mulher trans* com ascendência latina, Cárdenas é uma pesquisadora de arte e tecnologia diretamente interessada no efeito delas na cultura. Inspirada por marcas da diferença em grupos vulneráveis à violência no espaço público, Cárdenas propõe, com as Autonets, que peças de vestuário remetentes a culturas urbanas subalternas sejam aumentadas tecnologicamente como redes táticas de vigilância. A pesquisa é desenvolvida em parceria com outros artistas, movimentos sociais e hackers de diversas localidades.

Um acordo prévio entre quem vestirá as peças Autonet determina como a interface será utilizada. Ela pode informar a localidade das pessoas da rede e se alguma delas está em situação de vulnerabilidade. Desta forma, existe uma chance maior do grupo se distribuir de modo estratégico e agir contra atentados. Um pressuposto importante para as peças está no fato de que elas não dependem da internet usual, providenciada por conglomerados da telecomunicação para funcionarem em redes telemáticas. Ou seja, Cárdenas quer, na concepção do projeto, pensar em maneiras dos grupos oprimidos criarem suas próprias redes, evitando a possibilidade de atores externos que mantêm a ordem vigente interferirem. Ao mesmo tempo, com este trabalho, a artista critica o monopólio corporativista das redes telemáticas de informações digitais.

Diz o artista e pesquisador da Universidade da Califórnia Ricardo Dominguez que “ativistas descumprem a lei, enquanto artistas mudam o diálogo de maneira teatral, perturbando a lei”. Com isso, Dominguez não quer dizer que a atuação política de artistas é teatralizada, sem chances de interferir de modo factual em problemas sociais. O que observamos na prática dele e de outras como Micha Cárdenas e Steve Kurtz (do Critical Art Ensemble, preso por suspeita de bioterrorismo em 2004) é justamente o modo performativo com que o status quo se mantém. Ou seja, o quanto a sua sustentação consiste na constante reiteração dele por ele mesmo.

Por exemplo, Ricardo Dominguez e o grupo Electronic Disturbance Theater, do qual Micha Cárdenas participa, foram investigados pelo FBI após realizar o projeto Transborder Immigrant Tool. O EDT desenvolveu uma interface para celulares de baixo custo, em parceria com grupos de apoio a imigrantes latinos, que mapeia pontos estratégicos de abrigo e água na fronteira do México para os Estados Unidos, além de ser um suporte para poesia digital. Apesar do trabalho não ter sido aplicado em larga escala, a repressão a ele mostra como direitos humanos valem pouco diante da postura estadunidense em relação às suas políticas de imigração.

Ryan Hammond, artista norte-americano que pesquisa biotecnologia, consultou especialistas em legislação no desenvolvimento do projeto Open Source Gendercodes para garantir a sua aplicabilidade. O trabalho visa encontrar uma forma autônoma de produção de hormônios para o uso de pessoas trans*, a fim de assumir que a patologização desses corpos e subjetividades é um problema cultural. A construção das histórias trans* não deveria estar à revelia do discurso médico, fortemente atravessado por demandas da indústria farmacêutica, e sim ser um processo em que deveriam se engajar, em primeiro lugar, as pessoas que passarão por ele. Para tanto, Hammond investiga como produzir hormônios a partir da manipulação das folhas do tabaco, de forma independente do mercado farmacêutico.

Ryan Hammond durante trabalho em laboratório. Foto de: Ryan Hammond

Tanto Hammond quanto Cárdenas e o Electronic Disturbance Theater apostam em técnicas de código aberto nos seus processos artísticos. Consoantes com a ideia de que todo conhecimento deve ser compartilhado, as iniciativas comentadas acima operam pela intersecção de lutas políticas, sendo que uma delas é assumir que arte e tecnologia são fenômenos culturais, que têm o potencial de expor e mudar dinâmicas da opressão.

Tiago Rubini, artista transmídia baseado em Curitiba, também pesquisa arte e tecnologia pelo viés do código aberto. O artista tem desenvolvido o projeto Estridente, que visa discutir a violência no espaço público através do uso tático do som. Os estridentes são dispositivos portáteis de dimensões modestas que funcionam como alarmes. São formulados, a princípio, com três finalidades principais: para serem posicionados em pontos onde ocorreram episódios de violência, serem incorporados em peças de vestuário como alarmes pessoais ou para dispararem em pontos estratégicos, definidos em acordos prévios, que chamam atenção para atentados e alertam as pessoas que sabem da sua funcionalidade.

Circuito do projeto Estridente, por Tiago Rubini (copyleft)

Os estridentes vieram de uma urgência do artista em criticar a heteronormatividade truculenta no espaço público através do que ele chama de microhisteria eletrônica. No Brasil, definido por Berenice Bento como “o país do transfeminicídio” e onde pessoas não-heterossexuais são assassinadas a cada 28 horas, dissidentes são violentados frequentemente nas ruas à noite, espaços de trabalho, trânsito e convivência deste perfil.

Embora muitos dos episódios de violência de gênero ocorram dentro do espaço privado das escolas, locais de trabalho e famílias, o artista visa destacar, no espaço público, que corpos dissidentes resistem e reagem. Também quer expor, dessa forma, que a constante negligência das instituições brasileiras em relação a episódios de violação aos direitos humanos é um problema que afeta significativamente a vida do espaço público.

Tiago Rubini é pesquisador e artista transmídia. Se interessa por arte e tecnociência como fenômenos culturais e investiga a sonoridade eletrônica através de uma perspectiva pós-colonial e queer. Participou de exposições, ministrou oficinas e realizou performances no Brasil e na Espanha. Mais informações em http://tiago.hotglue.me