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Smart Cities como estratégia discursiva: o caso brasileiro

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Por Raquel Renno | Boletim Antivigilância n. 13

Diferentes definições sobre smart cities podem ser encontradas em textos de economistas, engenheiros, urbanistas, sociólogos. A diferença entre conceitos não decorre apenas de diferentes visões e referenciais teóricos. De acordo com Fernández, que buscou analisar as diferentes definições e implicações das smart cities na literatura atual, trata-se de um “discurso que não se submete ao princípio de coerência argumentativa” que tem como base construir uma estratégia retórica generalizante que funcione em cidades tão díspares como Barcelona e Bhubaneswar. Como pano de fundo, temos o apoio em uma tecnologia de ponta que vem organizar o suposto caos das cidades. Reduzir as cidades a um todo disforme que deve ser organizado não é exatamente novo na história do urbanismo. Este tipo de argumento é especialmente atrativo para as grande urbes latinoamericanas, consideradas um agrupamento caótico pleno de violência e sistemas inoperantes. Esta ideia acaba por se tornar uma marca em si como se pode ver em empreendimentos como Smart City Pinheirinho, que esvazia completamente o conceito de smart city propondo apenas um prédio de apartamentos residencial buscando relacionar-se com o slogan que frequentemente se associa à cidade de Curitiba.

Mesmo com a tendência globalizante de soluções e produtos que provêm de apenas um punhado de grandes empresas internacionais de tecnologia, podemos observar como este discurso é impactante. Curitiba, quando mencionada como a primeira smart city do Brasil, ainda carrega a história que a tornou conhecida internacionalmente com o BRT (Bus Rapid Transit), ou Transporte Rápido por Ônibus criado por Jaime Lerner nos anos 70, mesmo que os problemas para a integração dos passageiros que moram nos arredores da cidade atualmente sejam bastante distintos do que o que se revelam nas imagens da cidade divulgadas nas mídias e na web. Ao mesmo tempo, os velhos problemas de empresas de transporte vs. empregados vs. poder público seguem como em outras cidades brasileiras. A cidade que ainda é celebrada como a possuidora do melhor sistema de transporte do Brasil também é a cidade com mais automóveis por habitantes.

Um dos grandes desafios das smart cities é conectar propostas macro com o contexto urbano local, que está em constante movimento e não opera sob parâmetros generalizantes e centralizadores. De acordo com o urbanista Goodspeed, uma smart city “busca serviços e sistemas de cidade eficientes por meio de monitoramento e controle em tempo real. A cidade se transforma em um sistema para ser otimizado. Para se chegar a este objetivo, a cidade é instrumentalizada por meio do uso de sensores para a coleta de dados e equipamentos de controle que podem incluir o próprio morador da cidade.” A partir desta definição podemos perceber claramente que conceitos como inovação, eficiência e desenvolvimento acabam sendo transportados da esfera privada para a pública, como uma ferramenta discursiva que serve de base argumentativa para o controle e privatização dos espaços públicos. A visão de ordenação por meio da tecnologia é claramente objetiva, no sentido de ser centrada em objetos. Após o smart phones, que venham as smart cities.

Imagem: Mark Bradford

RIO DE JANEIRO: HOUSTON, WE HAVE A PROBLEM

Enquanto vários projetos de smart cities e Internet das Coisas anunciam sua aposta pela ubiquidade, o exemplo mais conhecido de projeto de smart city no Brasil se estrutura na já conhecida sala de controle, presente desde os anos 20 como estrutura de monitoramento de indústrias (alguns autores vão mais além e relatam que Uffizi, construída no século 16, já seria um grande edificio para centralização e processamento de dados sobre a cidade). O Centro de Operações (COR) inaugurado na cidade do Rio de Janeiro por ocasião da Copa do Mundo de 2014, celebra o aumento das 93 câmeras instaladas no inicio de suas operações para as 530 atuais. Imagens da sala de controle aparecem com frequência na mídia como símbolo de uma proposta eficiente de gestão moderna da cidade, não por acaso lembrando o que vemos em filmes de aventura espacial. O prefeito da cidade, Eduardo Paes, descreve os primeiros passos rumo à smartização da cidade, afirmando que

“estamos aplicando tecnologia para beneficiar a população e fazer eficientemente a transição para uma smart city. Além de utilizar toda a informação disponível para a gestão municipal, nós as compartilhamos com a população em dispositivos móveis e redes sociais. Deste modo, nós os empoderamos com iniciativas que podem contribuir com a melhora do fluxo das operações da cidade.”

As funcionalidades foram desenvolvidas com base no API do Google Earth e a empresa desenvolvedora IPNET Soluções recebeu o selo de parceira premier da Google (Google’s Enterprise Maps for Business Premier Partner). Concessionárias, órgãos públicos e a própria população (por meio do aplicativo Olhos da Cidade, desenvolvido especificamente para a prefeitura do Rio) colaboram enviando dados de tráfego, incêndio, chuvas, protestos, etc para o COR, embora apenas boletins e análises realizadas e disponibilizadas pelo COR possam ser acessadas pelos usuários. Outros produtos Google como Waze e Hangout também fazem parte do pacote da parceria da prefeitura como apoio aos usuários. Temos aí problemas de acesso unidirecional aos dados, já que enquanto a central acessa tudo, o usuário fica dependente das alternativas que o COR decide publicar. Há também a limitação das interfaces destes aplicativos — apenas os caminhos oferecidos pelo serviço podem ser seguidos, isto é, o usuário se adapta ao formato previamente desenhado — e do próprio conceito de mapa do Google, já questionado por muitos por seus contratos de uso restrito, pouca transparência no acesso e gerenciamento dos dados e cujas alternativas abertas como OpenStreetMaps têm se mostrado bastante mais eficientes no compartilhamento e utilização horizontal de dados na relação entre poder público e sociedade civil.

Outro projeto celebrado pela mídia por atrair grandes investimentos à cidade e por revitalizar a área portuária é o Porto Maravilha. Um dos maiores projetos em andamento na cidade e parte da Cidade Olímpica, o Porto Maravilha juntamente com os principais equipamentos culturais da área como o MAR e o Museu do Amanhã são alvo de grandes polêmicas. As acusações variam da privatização do espaço público à elitização do que se concebe como cultura na área (assumindo erroneamente que ali nunca houve um tecido cultural antes da construção dos museus), além de remoções violentas que os moradores pobres que habitavam a região vêm sofrendo desde os preparativos para a Copa.

Grandes empresas multinacionais e os principais canais de mídia vem apoiando a opção do Rio pelas soluções smart cities, o que mostra visões bastante divergentes sobre o que deve ser prioridade para a cidade. A cidade mais conectada do país é, por exemplo, a que altera trajetos de ônibus para evitar que haja conexão direta da periferia para as praias da zona sul, a área mais abastada da cidade. As soluções smart não se limitam a macro-projetos de impacto simbólico como os expostos anteriormente. O governador do estado, por exemplo, já anunciou o projeto de lei que obriga a identificação dos usuários do Bilhete Único (cartão que permite que o usuário realize até 4 viagens de ônibus durante 3 horas seguidas pagando apenas uma passagem) via biometria com o intuito de diminuir fraudes no uso do benefício. Cristiano Therrien resume em entrevista o contexto de risco que a produção de dados em larga escala pelas soluções smart cities provoca:

“Em nome da eficiência administrativa, pode-se armazenar, por exemplo, enormes massas de dados de mobilidade urbana (placas e identificação por radiofrequência em veículos, passes e GPS em ônibus), cujos bancos de dados podem ou não intencionalmente identificar seus usuários. Mas no caso brasileiro, onde propostas de lei de proteção de dados pessoais aguardam configurações parlamentares ideais para serem tratadas pelo congresso nacional, não encontramos as estruturas legais e institucionais necessárias para lidar com os riscos à proteção dos habitantes dessas cidades inteligentes que saberão cada vez mais sobre eles.”

As perguntas de base que estes sistemas de banco de dados gerados em nome da segurança e da eficiência suscitam devem ser discutidas amplamente pela sociedade civil. Que dados podem ser colhidos sobre a cidade e os cidadãos? Não se trata da possibilidade apenas técnica, mas ética. Como Cerrudo bem aponta em seu levantamento, a que riscos os cidadãos estão expostos com a implementação destas novas ferramentas? Como devem ser processados, arquivados, qual o nível e o alcance de acesso a estes dados? Podem e devem ser livremente compartilhados e reutilizados? Que leis o Brasil tem ou precisa ter para regular estas máquinas de geração de dados sobre a cidade e a população? Até o momento estas discussões não vêm sendo realizadas com a amplitude e profundidade necessária no país. Já é tempo de trazer a discussão que relacione a tecnologia que queremos com a cidade que queremos.

Raquel Rennó é membro da Coding Rights e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Doutorado em Sociedad de la Información y Conocimiento da UOC (Universitat Oberta de Catalunya), membro do ICIE (International Center for Info Ethics — Alemanha). Gerencia projetos educativos sobre os temas da inclusão digital e direitos humanos com ativistas e professores da etnia Pataxó (Brasil). Mais informações em http://raquelrenno.net

Texto publicado originalmente no Boletim Antivigilância n. 13 — Cidades inteligentes e vigilância, de março/2016.