CONTRIBUIÇÃO PROGRAMÁTICA PARA AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2024

TECNOPOLÍTICA E DIREITOS HUMANOS NOS MUNICÍPIOS[1]

As eleições municipais no Brasil ocorrem em meio a um cenário árduo de disputa ideológica marcada pelo avanço da extrema direita no país e no mundo, campo político que tem se
mostrado hábil no uso e debate sobre tecnologia. É no cotidiano das mais de 5.500 cidades brasileiras que os impactos do acesso desigual à rede e do desenvolvimento tecnológico,
marcado pela atuação das Big Tech e dos setores conservadores, é mais sentido, principalmente, pela população pobre, preta, indígena, favelada, de mulheres, LGBTQIAPN+ e outros setores mais vulneráveis. Diante deste cenário, é cada vez mais urgente que o campo político progressista compreenda a centralidade das tecnologias digitais, desde a prestação de serviços públicos até a manutenção das esferas de debate democrático.

É preciso que figuras públicas, lideranças de movimentos sociais e mandatos legislativos e executivos, comprometidos com a democracia, aprofundem e tragam para suas pautas a discussão sobre o impacto e as possibilidades do uso da tecnologia nos territórios.  Apesar das narrativas que tentam elevar a tecnologia a um patamar quase etéreo, a internet é uma estrutura física, geolocalizada e atravessada por relações de poder, e que é sentida e vivida nos territórios. Cabos, satélites, antenas, servidores, computadores, celulares, minas, garimpo, códigos de programação, lixo eletrônico… existe muita materialidade e trabalho para que tudo funcione. Quem detém o poder de cada trecho dessa estrutura? De que territórios são extraídos os recursos minerais para esse desenvolvimento tecnológico? Para onde vai o lixo eletrônico? Que valores são embutidos nos algoritmos das redes sociais? Quem usufrui da conectividade, quem fica de fora? O quanto a digitalização facilita a vigilância? Quem tem o poder de vigiar? Quem lucra? Como resistir ao colonialismo digital? A Internet é um território em disputa que afeta os futuros das nossas democracias e os caminhos rumo à justiça climática e sócio-ambiental. É necessário responder a essas perguntas e compreender como esse enorme desequilíbrio de poder afeta a vida cotidiana nos diferentes corpos e territórios e, assim, construir saídas coletivas para hackear a estrutura tecnopolítica hegemônica vigente para construir cidades socialmente justas e ambientalmente sustentáveis.  

Na intenção de contribuir com a difusão dessa discussão tão importante, reunimos neste documento algumas diretrizes tecnopolíticas voltadas para a garantia de direitos, com olhar direcionado aos municípios e que têm como base princípios feministas, decoloniais, antirracistas, que englobam a população negra, indígena, LGBTQIAPN+ e demais habitantes dos territórios mais vulneráveis; além de princípios igualitários e de defesa da justiça socioambiental. Trata-se de um documento em que candidatas, candidates e candidatos à Prefeitura e à Câmara de Vereadores das cidades do estado do Rio de Janeiro comprometem-se a debater, refletir e formular não só políticas públicas, caso venham exercer um mandato, mas também projetos de sociedade e ações políticas insurgentes para os seus territórios, que levem em conta a materialidade da internet e das tecnologias sob tais bases.

No acesso à conectividade e inclusão crítica no uso de tecnologias digitais

Nas cidades brasileiras a conectividade não é para todes. 62% da população brasileira acessa a internet apenas por telefones celulares, e a desigualdade nas cidades é evidente: nas favelas e comunidades, 43% da população tem acesso precário à internet. A distribuição da infraestrutura de comunicação é extremamente desigual nos territórios, e quem vive nas áreas mais ricas dos municípios tem um acesso de maior qualidade, o que reforça privilégios e a desigualdade territorial e de oportunidades. É preciso combater essa lógica de exclusão no âmbito municipal e pensar políticas de inclusão ao mundo digital que sejam realmente universais e críticas. Além disso, vemos a soberania digital e dos dados cada vez mais ameaçada pelos monopólios de empresas de tecnologia. As infraestruturas públicas de armazenamento e distribuição de dados passam a cada dia para mãos privadas, que detém o controle de dados públicos das mais diversas áreas. 

  • Planos de incentivo à distribuição das redes de infraestrutura de comunicação em áreas de favelas, periferias e zonas rurais das cidades, garantindo acesso universal à internet. 
  • Fomento ao debate crítico sobre conectividade: conexão como e para quê?
  • Incentivo a redes comunitárias, independentes de interesses corporativos.
  • Incentivo ao uso de softwares livres no poder público municipal – para garantir segurança, isonomia e transparência na informação pública e coleta e armazenamento de dados. 
  • Transparência e fomento à produção e divulgação de dados cidadãos, principalmente sobre os municípios da Baixada Fluminense e nas áreas de favela dos municípios.

Na Segurança Pública 

A narrativa de cidades vigiadas está cada vez mais presente nos debates sobre segurança pública. Mas longe de garantir cidades mais seguras, sistemas como o reconhecimento facial e o policiamento preditivo contribuem para a segregação socioeconômica e para o encarceramento em massa, em especial da população pobre e preta, já que são tecnologias desenvolvidas dentro da uma lógica patriarcal e moldadas pela branquitude. O racismo algorítmico, que produz uma ordenação racializada e de classificação social para essas tecnologias, deve ser levado em consideração quando pensamos sua implementação nos municípios. Da mesma maneira, populações historicamente vulnerabilizadas, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas negras, indígenas, entre outras,  também são mais frequentemente alvejadas em diversas formas de violência habilitada por tecnologias em redes e aplicativos online, o que demanda uma atenção especial ao se pensar políticas de segurança pública.

  • Promoção de debates e apoio a projetos de lei que considerem o banimento do reconhecimento facial na segurança pública.
  • Compromisso com a fiscalização da idoneidade, histórico e origem de empresas contratadas para a implementação de tecnologias na segurança pública.
  • Fomento ao debate sobre os vieses dos sistemas algorítmicos quanto à raça, classe e gênero, e os problemas que podem gerar em sua implementação na segurança pública. 
  • Campanhas de conscientização sobre violência de gênero facilitada por tecnologias, seja contra mulheres ou população LGBTQIAPN+
  • Campanhas de conscientização sobre golpes e violência quando da utilização de aplicativos de relacionamento, principalmente contra mulheres e população LGBTQIAPN+
  • Ampliação de formação de agentes públicos para lidar com denúncias de violência de gênero habilitada por tecnologias, em todas suas interseccionalidades.
  • Ações que buscam ampliar a transparência nos dados da Segurança Pública municipal para elaboração de políticas públicas eficientes, mas também para o controle e fiscalização das forças de segurança nos municípios.

No Trabalho

A plataformização do trabalho é uma realidade que, literalmente, atravessa as cidades. Motoristas de aplicativo do setor de passageiros tiveram suas jornadas de trabalho ampliadas nos últimos anos, mas com forte queda da renda média e cada vez menor contribuição previdenciária, o que prejudica a segurança de um futuro com dignidade. Entre 2012 e 2015, eram cerca de 400 mil trabalhadores dessa categoria e sua renda média era de 3 mil reais. Em 2022, o total desses trabalhadores aumentou para cerca de 1 milhão, com um rendimento médio inferior a 2,1 mil reais. Longe de ser uma opção de emprego e renda, a plataformização se mostra como um formato mais cruel e eficiente de precarização e exploração do trabalho. Outro setor do mundo do trabalho em crescimento, mas com poucos dados levantados é o de moderação de conteúdo, que cresce à medida em que avança o uso das redes sociais e sistemas de inteligência artificial. Esses trabalhadores e trabalhadoras vivem em nossas cidades, e é urgente levantarmos dados sobre esse setor, bem como garantir seus direitos e proporcionar espaços para sua organização. 

  • Promoção de projetos que visem a regulamentação da função dos trabalhadores de aplicativos nas cidades, com garantia de direitos. 
  • Fomento às iniciativas focadas no levantamento de dados sobre os trabalhadores e trabalhadoras do setor de moderação de conteúdo nas cidades. 
  • Campanhas de conscientização sobre direitos nos trabalhos de aplicativos e moderação de conteúdo. 
  • Apoio à criação de centros de atenção e apoio a trabalhadores de aplicativos (com tomadas, banheiros, copas/cozinhas etc).
  • Apoio ao desenvolvimento de aplicativos para trabalho pelas próprias das prefeituras (transporte, logística, saúde, etc).
  • Incentivo à criação de plataformas autogestionadas pelos movimentos sociais para prestação de serviços (ex. Contrate quem luta).

Na Saúde

A importância dos dados em saúde para a compreensão da realidade e planejamento de ações ficou evidente na pandemia, em que vimos o quanto o caos informacional e a falta de vontade política afetaram a vida da população. De acordo com cálculos do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), um terço dos municípios utiliza o prontuário eletrônico do e-SUS, outro utiliza sistemas próprios e um último terço, fichas em papel que posteriormente serão digitalizadas pelas secretarias de saúde. Enquanto esses dados circulam de forma aleatória por hospitais e postos de atendimento, aqueles e aquelas que dependem do sistema público de saúde adoecem e até morrem em filas e salas de espera, o que muitas vezes é consequência da falta de interoperabilidade entre os dados do sistema de saúde. Outro problema é a falta de segurança de dados ultra-sensíveis de saúde da população, que são frequentemente vazados e explorados economicamente, ferindo a dignidade de quem está nas situações mais vulneráveis. É urgente que os serviços públicos de saúde municipais e estaduais façam a integração digital de suas redes, com segurança, para maior agilidade nos atendimentos e para garantir a vida das suas populações. 

  • Apoio a iniciativas de integração eficiente de dados da saúde pública municipal levando em conta questões de soberania e segurança.
  • Promoção de diálogos e trocas de informação junto à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) visando à garantia do direito à privacidade dos dados ultrassensíveis de saúde dos cidadãos. 
  • Criação de mecanismos de transparência de dados da área da saúde, com respeito à privacidade de dados pessoais, para que seja possível elaborar políticas públicas eficazes e benéficas à população.
  • Incentivo ao uso de dados agregados na saúde pública municipal com vistas a reduzir filas de espera e otimizar o atendimento, melhorando o acesso à saúde nos postos e hospitais municipais.
  • Incentivo ao uso de tecnologias para melhorar a qualidade e acesso do atendimento e tratamento a questões de saúde mental da população.

No Meio Ambiente

A crise climática e ambiental é uma realidade iminente. É urgente o desenvolvimento de planos de prevenção e mitigação que contem com investimento em tecnologias de monitoramento e alerta às populações das cidades, em especial das áreas mais vulneráveis, que são as maiores vítimas do racismo ambiental. A produção de lixo eletrônico e seu descarte é também um fator agravante dessa crise. Sabemos que aqueles que mais produzem lixo eletrônico são os que vivem mais distante dos lixões e dos contaminantes altamente tóxicos liberados por esse tipo de dejetos. Campanhas de conscientização sobre o consumo excessivo e planos de coleta seletiva e apropriada desses materiais é papel dos gestores públicos dos municípios e deve ser parte dos planos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

  • Planos de mitigação às mudanças climáticas com investimentos em tecnologias seguras e públicas de monitoramento e alerta, em especial para áreas de risco.
  • Apoio a programas de reciclagem e conscientização sobre consumo de equipamentos eletrônicos e produção de lixo eletrônico.
  • Incentivo público ao desenvolvimento de tecnologias voltadas para a mitigação das mudanças climáticas, tais como ferramentas de mapeamento de áreas de queimadas, de risco de enchentes e deslizamentos.
  •  Promover plataformas de dados cidadãos para o monitoramento do abastecimento de água, energia, coleta de lixo etc.

Na Educação e Cultura

Acesso à Cultura e à Educação pública e de qualidade são direitos básicos fundamentais que tem várias intersecções com o debate sobre que tipo de inserção crítica queremos ter nas tecnologias dominantes e que tipo de tecnologias queremos desenvolver desde a perspectiva da nossa cultura e das vivências e necessidades dos nossos territórios. Pensar a interseção entre educação, cultura e tecnologia é fundamental para a construção de futuros de nossas crianças e adolescentes que crescem em um mundo cada vez mais digitalizado. É preciso, portanto, que gestores e gestoras de políticas públicas debatam e lidem com seriedade sobre os efeitos das tecnologias na educação e na formação e sobre o papel da educação para o desenvolvimento tecnológico que queremos.

  • Garantir ensino básico e fundamental de qualidade, preferencialmente em período integral, e com acesso à internet e equipamentos de qualidade para uma verdadeira inclusão digital na educação.  
  • Criação de programas de abordagem sobre “tecnopolítica nas escolas”, com o objetivo de difundir os debates sobre tecnologia e direitos humanos desde o ensino básico até o ensino técnico e superior.
  • Implementação de centros culturais e esportivos, prioritariamente nos territórios mais pobres e carentes de tais recursos, que pensem uma cultura livre holística: com acesso à arte, cultura, esporte e equipamentos de tecnologia para todos, todas e todes. 
  • Formação de professores para fomento a uma visão crítica e atualizada sobre uso de tecnologias na educação e garantia dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras da educação.
  • Campanhas de conscientização sobre a violência de gênero, assédio e saúde mental no uso de redes sociais.
  • Promoção de debates e ações para lidar com o tema da evasão escolar e da violência urbana de intervenções policiais que afetam principalmente alunos da rede pública.
  • Criação de cursos extracurriculares voltados para a produção de conhecimento e cultura livres, voltados para produção de arte e cultura, que utilizem softwares livres e independentes de interesses corporativos.
  • Fomento a programas de incentivo à juventude periférica em cursos de formação em áreas das ciências da computação.
  • Incentivo a iniciativas multidisciplinares entre ciências da computação e demais áreas das ciências sociais em todas as redes de educação pública. 
  • Fomento ao debate e à produção de pesquisas e dados sobre discriminação algorítmica e seus impactos e a linhas de incentivo ao desenvolvimento de tecnologias antiracistas e feministas nas escolas públicas, cursos técnicos etc. 
  • Fomento de debates sobre banimento do reconhecimento facial nas escolas da rede municipal.

As candidaturas abaixo assinadas apoiam o conteúdo desta contribuição programática, e se comprometem a atuar politicamente orientadas pela tecnopolítica que se referencia nos territórios, na defesa dos direitos humanos e da dignidade de todos, todas e todes as pessoas, bem como no combate às desigualdades e ao avanço dos interesses privados que visam apenas ao lucro, em detrimento do bem público e comum. 

Se sua candidatura deseja apoiar esta contribuição programática, basta assinar aqui:

(iremos atualizar a lista de signatários constantemente)

Para ter acesso ao pdf deste documento, acesse: https://codingrights.org/docs/notas_tecnicas/contribuicao_programatica_tecnopolitica_eleicoes_2024.pdf

[1] Este documento foi impulsionado pela Coding Rights, organização que atua e debate tecnologia sob uma perspectiva coletiva, transfeminista, decolonial e antirracista de defesa de direitos humanos, mas construído coletivamente, com aportes de candidaturas de diferentes cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro. Foi realizada no dia 03 de setembro de 2024 uma oficina sobre tecnopolítica, direitos humanos e políticas públicas municipais, que teve como material de referência o Mapa dos Territórios da Internet (cartografiasdainternet.org) e contou com a presença de nove candidaturas à vereança, representando 5 municípios a região metropolitana do Rio de Janeiro, além de um mandato estadual. Estiveram presentes e contribuíram para a construção deste texto as seguintes candidaturas: Luciana Boiteux (PSOL/Rio de Janeiro), Babu Santana (PSOL/Rio de Janeiro), Vanderlea Aguiar (PSOL/Rio de Janeiro), Rick Azevedo (PSOL/Rio de Janeiro), Clarice Chacon (PSOL/Rio de Janeiro), Elaine Monteiro (PT/Nova Iguaçu), Fernando Nicholas (PSOL/São João de Meriti), Anderson Ribeiro (PSOL/ Magé), Benny Briolli (PSOL/Niterói),  Mandato Dani Monteiro (PSOL/Deputada Estadual-RJ).