Como olhar e monitorar campanhas eleitorais na era da Big Data
#blogpost #desinformação #eleições #proteção de dadosPor Renata Ávila* | Boletim Antivigilância n.16
DEMOCRACIA EM RISCO, REGRAS OBSOLETAS
Os pilares de uma eleição livre e justa são transparência, igualdade e honestidade nas campanhas eleitorais, além de acesso a informações oportunas, que permitam aos eleitores tomar uma decisão embasada no momento do voto e realizar uma fiscalização cidadã constante, não apenas nos períodos eleitorais. Esses pilares estão moldados na Carta Democrática da Organização dos Estados Americanos e são um guia tanto para entidades de controle de eleições como para observadores dos processos eleitorais.
Entretanto, a normativa e a prática dessas instituições está perdendo a eficácia em enfrentar os problemas das campanhas e processos eleitorais de hoje, especialmente no que se refere aos elementos digitais. Com regras conservadoras e literais, redigidas à luz da mais pura tradição positivista, os desenvolvimentos tecnossociais acelerados estão deixando os fiscais e observadores de eleições com mais perguntas do que respostas, sem ferramentas para exercer sua função reguladora e fiscalizadora dos processos que garantem as eleições, e com vazios sancionatórios ante fenômenos alarmantes, que vão além de uma única plataforma (Facebook), causando impacto nos eleitores.
NEM NOTÍCIAS, NEM PAUTAS NA RÁDIO E TELEVISÃO: ISTO É DIFERENTE
Contabilizar a campanha eleitoral física e prestar contas sobre ela já é uma tarefa difícil. Complicações de acesso geográfico, gastos ocultos e gastos informais contaminam as campanhas. As autoridades desenvolveram regras claras e precisas para os gastos eleitorais de ontem, assim como para evitar campanhas antecipadas, as quais funcionam mais ou menos bem.
A situação se complica consideravelmente quando a campanha e seus elementos são digitais, descentralizados e personalizados. Hoje, o desenvolvimento de uma campanha e um investimento maior — que garante resultados superiores com relação aos concorrentes — são ex ante. O partido ou candidato que pode pagar vai investir com antecedência em bases de dados e plataformas de marketing político sofisticadas, que vão lhe permitir usar as redes sociais de modo muito mais eficaz que seus concorrentes.
Geolocalização de mensagens, perfis de consumo por localização geográfica, perfis psicométricos que apresentam inclinação para certas promessas eleitorais, fatores de idade, classe, hábitos — todas essas informações podem ser adquiridas e transformadas em campanhas mais eficazes voltadas para os eleitores. E esses são gastos para os quais a obrigatoriedade de prestação de contas ainda é uma área nebulosa.
Uma modelagem de dados sofisticada realizada antes do lançamento e durante uma campanha eleitoral pode ser o fator definitivo para partidos em contextos políticos polarizados, quando uma variação de 1% pode fazer a diferença. Além disso, o problema se estende a aspectos relacionados ao comércio de dados pessoais e à privacidade. Existe um abuso contínuo na coleta e na análise de big data dos eleitores latino-americanos. A pergunta é se devemos exigir uma coordenação entre as autoridades de proteção de dados (nos países onde elas existem), as Comissões de Direitos Humanos e as autoridades eleitorais para solicitar aos partidos políticos detalhes sobre todos os dados e infraestruturas digitais usados nas campanhas. É um requerimento que parece cada vez mais necessário para que as disputas eleitorais sejam justas.
INFORMAÇÕES DESIGUAIS SOBRE AS CAMPANHAS
As novas tecnologias apresentam também um desafio para a transparência e o acesso livre às informações do processo eleitoral. Um número significativo de eleitores recebe as informações somente através de redes sociais, sem compreender o processo de filtragem e curadoria de conteúdo que estas executam automaticamente, sem que possa entender a lógica por trás de tal distribuição. Como medir ou testar se um algoritmo de uma rede social está privilegiando certo conteúdo ou candidato em detrimento de outro?
As plataformas de redes sociais são caixas pretas, com algoritmos complexos e protegidos por segredos industriais que regem seu comportamento. Elas não estão sujeitas às antigas regras éticas e eleitorais que se aplicam aos jornalistas e aos meios tradicionais de informação e comunicação. Por exemplo: não é possível garantir que elas não violem as proibições de distribuição de certos conteúdos antes da votação, uma restrição temporal à livre circulação de informações prevista em quase todas as legislações eleitorais latino-americanas. Mediante a capacidade das redes sociais de oferecer mensagens segmentadas e dirigidas a certas audiências, os eleitores vão receber planos de governo e promessas eleitorais de forma personalizada. Isso é tão ou mais preocupante do que quando os espaços oferecidos aos partidos na rádio e na televisão não eram distribuídos igualmente? Quais são as implicações disso sobre o voto informado?
Da mesma forma, a parcialidade da mídia impressa, irradiada e televisionada e da cobertura dada a um candidato pode ser medida objetivamente, mas a distribuição e a preferência das notícias circuladas nas redes sociais é um problema ainda sem solução. Dois eleitores com perfis quase idênticos têm dietas midiáticas muito diferentes, duas pessoas muito diferentes fazem leituras muito diversas de situações políticas idênticas, como demonstrou o projeto Facebook Tracking Exposed a respeito das eleições na França. É possível haver um diálogo democrático se o conteúdo que recebemos sobre o que nos cerca está constantemente reafirmando nossas posturas e não temos acesso ao outro lado?
ELIMINAR VOTOS, MANIPULAR ELEITORES A PARTIR DE CAMPANHAS EXTERNAS E ANÔNIMAS
Com relação à honestidade das eleições, há vários fenômenos importantes a considerar. A censura inversa, por meio de uma inundação de informações confusas nas redes e ataques realizados por bots políticos é um caso frequente no México que está se espalhando rapidamente por toda a região latino-americana. Calcula-se que existem 48 milhões de bots no Twitter e muitos outros no Facebook, os quais enfraquecem vozes independentes essenciais, sufocam reclamações legítimas e praticamente fazem os partidos pequenos desaparecerem do mapa das redes sociais.
A prática regional mais simples e barata, tanto por parte do oficialismo como de partidos ou mesmo de grupos de pressão, é a dos “Net Centers“. Estes oferecem um serviço de pessoas que promovem campanhas políticas, defendem o governo da vez (como no caso da Guatemala) e ainda traçam campanhas de desprestígio nas redes sociais usando as táticas já descritas e amplificando mensagens, muitas vezes sem fundamento, sepultando, dessa forma, o discurso legítimo dos cidadãos sob uma avalanche de desinformação em troca de dinheiro. “Gestão de imagem na rede” é o nome que se dá a isso. O problema central é como atacar esses problemas emergentes e ao mesmo tempo respeitar o direito ao anonimato, a liberdade de expressão e a proibição da censura prévia, o que, combinado com a pouca prestação de contas por parte das empresas privadas, transforma essas organizações em fortalezas impenetráveis.
Além disso, a questão da interferência de poderes paralelos ou de outros governos em uma eleição muito polarizada pode ser resolvida em total opacidade por qualquer um que possa pagar por isso ou que tenha acesso aos dados pessoais dos eleitores. O acesso que organizações como a Agência de Segurança Nacional (NSA) têm a dados confidenciais por meio do programa PRISM, revelado por Edward Snowden, combinado à estreita colaboração que empresas como Facebook e Twitter desenvolvem com o Departamento de Estado e o Departamento de Defensa, possibilitaria novas interferências na democracia de maneira quase imperceptível. Mas, com o baixo nível da cibersegurança das próprias autoridades de dados, que a cada ano filtra milhões de dados de eleitores, combinada com a indústria de data brokers que já existe, não é remota a possibilidade de que cartéis ou grupos paralelos possam se favorecer de tais técnicas de manipulação e predição de coletivos. Frente a esse panorama, as revelações sobre as ações da Cambridge Analytica perdem relevância. Como proteger, então, os processos essenciais para a democracia?
UMA NOVA ERA DE OBSERVAÇÃO ELEITORAL, NOVOS MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA
A capacidade de realizar eleições livres e justas enfrenta um risco novo e imediato, que não é exclusivo da região. Essa ameaça ocorre em situações eleitorais polarizadas. E existem dois caminhos a seguir: ou não se faz nada, e corre-se o risco de deflagrar uma crise que vai enfraquecer a confiança e a credibilidade dos processos eleitorais, ou tomam-se ações imediatas para adotar as melhores práticas sobre o tema. As missões eleitorais próximas já não podem ignorar a necessária auditoria e vigilância das novas tecnologias nas eleições e não se pode restringir isso unicamente àquelas auditorias superficiais da transmissão de dados dos resultados eleitorais. Estamos perante fenômenos mais complexos cujos atores escapam às jurisdições nacionais. As plataformas controladas pelos gigantes tecnológicos baseados na Califórnia estão no centro da ação, sendo confrontadas quanto a aspectos que são essencialmente de interesse público nacional.
PROPOSTA: UM LABORATÓRIO DE ESTUDO DE PRÁTICAS ELEITORAIS DIGITAIS
Este artigo deixa muitas perguntas sem resposta, mas, responder ao que foi levantado dispondo de poucos dados e pouca investigação sobre o assunto seria irresponsável e precipitado. Devemos observar esses fenômenos localmente e analisar criticamente, levando em conta os contextos políticos, sociais e culturais de nossos países.
As próximas eleições na região são uma oportunidade para isso — para explorar pilotos que vigiem os fenômenos descritos acima e colocar a América Latina na vanguarda, harmonizando tecnologia, democracia e cidadania, combinando as estruturas usuais de monitoramento e observação eleitoral.
Devemos desenvolver metodologias compartilhadas e identificar fenômenos repetidos ou não que usem as novas tecnologias combinadas a técnicas antigas com o objetivo de prejudicar os processos eleitorais.
Também podemos trabalhar em estreita colaboração com as autoridades eleitorais e os observatórios do voto, organizações que velam pelos direitos digitais e pela liberdade de expressão, privacidade e educação cívica para permitir a formulação de propostas fundamentadas e fazer frente a essas mudanças aceleradas.
Além disso, detectar e observar as novas práticas possibilitam testar diferentes medidas técnicas, de políticas públicas e de regras eleitorais e de privacidade que contribuirão para defender e promover os direitos dos cidadãos.
Para participar deste laboratório, escreva para elecciones@digitalcolonialism.org
Unamos forças.
*Renata Avila, da Guatemala, atua como advogada internacional, especializada em tecnologia, dados e direitos humanos.