Certidão de Registro Civil: diga-me com quem andas e te direi quem és
#blogpost #DNA #liberdade de expressão #privacidade #proteção de dados #vigilânciaPor yaso | Identidade e Internet*
As certidões de Registro Civil, em especial a de nascimento e óbito, são a chave para saber detalhes muito pessoais sobre a vida de alguém. Apesar disso, são registros públicos de consulta aberta, e servem principalmente para determinar a situação da pessoa perante a sociedade.
“Onde você nasceu?” — é o tipo de pergunta cuja resposta diz muito sobre qualquer um. O local de nascença, registrado na certidão de nascimento por exemplo, pode determinar etnia, hábitos alimentares, costumes culturais, entre outros fatores importantes para a posição da pessoa na sociedade. E essa é apenas uma das diversas certidões de registro civil, que tem a função de documentar para o público o “onde, quando, como e com quem” sobre uma pessoa, desde o seu nascimento até a morte.
É nessas certidões de registro civil, regulamentados pela Lei de Registros Públicos a partir de 1973, que constam informações essenciais para a vida da pessoa em sociedade, tais como o sexo biológico e o nome, emancipações, interdições, adoções, casamentos e óbitos.
Em tempos de Internet essas informações são também registradas em bancos de dados de empresas, como a Serasa, por exemplo, ou lojas que exigem cadastros para compras online e também não raro em redes sociais, onde são parte dos perfis públicos dos seus usuários. O Governo, os cartórios e outras entidades envolvidas no registro público de informações de registro Civil seguem integrando bases de dados que trocam entre si essas informações (como no caso do recente Decreto 8.798 de 2016 sobre compartilhamento de bases de dados na administração pública federal), oferecendo plataformas online para consulta, distribuição e requisição de documentos. Agilidade e desburocratização, mais uma vez, são o motivo primário desses esforços. No entanto, algumas discussões vão ficando sem resposta pelo caminho dessa integração. Sem discussão ampla, a sociedade perde a chance de evoluir e inovar no direito do cidadão à informação, liberdade de expressão e auto-determinação.
A CERTIDÃO DE NASCIMENTO, ÓBITO E TODAS AS OUTRAS
As certidões de registro civil são a prova do estabelecimento e mudança de informações sobre o estado civil de alguém no Brasil. A primeira delas é a certidão de nascimento. Para se fazer a certidão de nascimento é necessária a declaração de nascido vivo, emitida pelo hospital, maternidade ou por profissional de saúde responsável pelo parto (se a criança tiver nascido em casa o cartório mesmo pode emitir essa declaração). A “Declaração de Nascido Vivo” — DNV também tem sua regulamentação em lei, e é preliminar ao registro de nascimento, integrada com o Sistema Nacional de Informações de Registro Civil — SIRC inclusive, porém descartável. Com essa declaração, algum responsável pela criança é obrigado a ir a um cartório de registro civil para fazer a certidão que atesta que o Estado registrou o nascimento de alguém — a certidão de nascimento. Esta certidão passou a ser gratuita apenas em 1997, e atualmente os principais dados que ela contém são:
- O dia, mês, ano, lugar do nascimento e a hora;
- O sexo biológico da criança;
- Quando for gêmeo;
- O nome e o sobrenome dados à criança;
- Os nomes e sobrenomes, a naturalidade, profissão, domicílio ou residência dos pais, a idade da mãe na ocasião do parto;
- os nomes e sobrenomes dos avós paternos e maternos;
- os nomes e sobrenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do registro, quando o nascimento não tenha acontecido em maternidade.
As certidões não apresentam fotos nem dados biométricos.
Outros tipo de certidões de registro civil são a certidão de óbito e casamento. Dependendo do tipo de certidão, ela pode atestar que a pessoa está solteira, casada, viúva, separada, ou divorciada. Nesse último caso, não existe uma certidão de divórcio, nem de viuvez. Aqui, os papéis do divórcio ou certidão de óbito do parceiro são juntados aos outros documentos comprovando o estado civil da pessoa.
Uma coisa importante a notar no caso das certidões de registros desse tipo é que elas são consideradas de extrema importância para a vida de alguém em sociedade, principalmente as de nascimento e óbito. Por causa disso, a grande quantidade de pessoas que segue sem sua certidão de nascimento no Brasil é preocupante para os governos. O número é alto, apesar do documento ser a base para matrículas em escolas, uso de hospitais públicos, entre outros direitos e deveres do cidadão. Praticamente nada na vida “civil” pode ser feito sem a certidão de nascimento, justamente porque ela contém dados vitais para a administração pública evitar fraudes. Esse registro é de valor tão alto para a administração do país que existe uma expressão que determina a situação de quem não tem registro perante o estado: “invisibilidade burocrática”.
Esse tipo de papel que atesta que o Estado sabe quem alguém é e de onde veio, no entanto, não é obrigatório para indígenas, como para os demais cidadãos brasileiros. São antropólogos que vão determinar quando um registro é necessário para populações indígenas, e só a FUNAI pode coletar os dados ou autorizar a coleta. No caso dos indígenas, eles ainda podem declarar a etnia a qual pertencem no ato do registro, e carregar consigo a certidão com essa informação. Já quilombolas não possuem o mesmo direito de detalhar suas informações de origem nas certidões.
INTEGRAÇÃO: CARTÓRIOS ONLINE
Eis que em 2014, em mais um brilhante rompante centralizador, o governo criou o SIRC, o Sistema Integrado de Registros em Cartórios. Por decreto da presidência da República, ficou determinado que os cartórios deveriam enviar os dados registrados em seus sistemas periodicamente, obrigatoriamente, para uma base de dados única, centralizada, que ficaria sob a fiscalização, gestão e análise de um Comitê Gestor formado pelo governo — que também pode escrever o próprio regimento interno, além de outras atividades tais como:
“IV — autorizar o acesso aos dados do Sirc, de acordo com o art. 7º”
Assim, com a aglutinação de todas as certidões de nascimento, óbito, casamento e alterações nas mesmas em uma base, o SIRC compartilha dados, (e a regulamentação não detalha parâmetros para o acesso, nem limites ao que pode ser feito com os dados), entre variados órgãos, como por exemplo o INSS, a Receita Federal e o IBGE. Para evitar fraudes, existe troca de dados entre vários órgãos, sob a tutela do Comitê Gestor, que tem poderes amplos sobre o sistema.
O sistema em si, apresenta erros primários, como a falta de https e certificados vencidos, que já foram tratados nessa série de artigos, um indício de despreparo nas áreas de tecnologia responsáveis pela segurança dos sistemas Web.
Pela disponibilização de comunicados da dataprev, estatal que responde tecnicamente pelo sistema, e tutoriais na própria página, não é difícil imaginar as funcionalidades disponíveis para qualquer pessoa com acesso ao sistema, sendo as mais básicas: consulta, alteração, upload de novos dados, etc. É digno de nota o fato da DATAPREV cuidar de vários outros sistemas que coletam dados críticos dos cidadãos no Brasil.
É claro que alguns cartórios, sendo que quase todos são instituições privadas prestando serviços de caráter público (e sendo remuneradas por grande parte destes), já têm seus sistemas de consulta e emissão online. Não é difícil buscar na Internet por “certidão online” e apenas com o nome conseguir versão eletrônica da certidão de registro civil de qualquer pessoa nascida no Brasil nos últimos 80 anos (dependendo do cartório, até mais!). Esses serviços costumam facilitar a vida de muitas pessoas, permitindo que segundas vias possam ser requisitadas sem o deslocamento até um cartório. Pois muitas vezes é grande o custo da perda de horas de trabalho em as filas em cartórios, particularmente altas em locais que não contam com internet razoável para a realização de pedidos online, ou até para viabilizar o envio de material anexo em e-mails.
Os dados de registro civil de alguém são importantes para o governo porque é por meio deste tipo de informação que se estabelecem certas relações com a administração pública. Como falado anteriormente, o acesso às escolas e à saúde pública se dá ainda na infância, mediante apresentação da certidão de nascimento. Esse também é o documento necessário para a obtenção da Carteira de Identidade, ou para registro em programas sociais de monitoramento do Governo, como os programas que visam atender à exigências da ONU para o desenvolvimento de crianças, por exemplo. É o documento que registra nomes de avós, dando seguimento ao registro da árvore genealógica dos brasileiros, possibilitando projetos como o de Jay Verkler, por exemplo, diretor e fundador do Family Search, que faz parte de uma organização religiosa. O projeto está escaneando cópias de registros de nascimentos e óbitos em todo o mundo para mapear a genealogia da humanidade.
O conceito de registro civil está também muito ligado ao conceito de propriedade, portanto, informações sobre casamentos, óbitos e divórcios, que garantem a divisão correta de espólios ou a distribuição de pensão às viúvas, são de suma importância para órgãos de previdência e outros. Não é à toa que o CNJ instituiu também um sistema digitalizado e integrado de registro de imóveis, que pretende agregar informações sobre imóveis registrados, bastando para a consulta nesse sistema um CPF ou CNPJ.
Em meio à essa multiplicidade de registros governamentais sobre pessoas, suas famílias e fatos de suas vidas, todos com portas abertas em sites e serviços online, redes sociais como o Facebook, que registram também fatos como nascimento ou casamento por meio de interfaces lúdicas, servem como uma espécie de registro público autogestionado. Muitas vezes, pessoas declaram seu estado civil publicamente nestas interfaces, tornando públicas as informações antes mesmo que elas se tornem “oficiais”. Esta facilidade de gerenciar os próprios dados sobre estado civil, sexo (conceito atualmente contestado pelo movimento em prol de direitos sexuais e reprodutivos), e nome, coloca um dos maiores contrapontos ao controle centralizado que o governo exerce sobre estas bases, e aponta para uma das maiores inovações que poderiam ser adotadas no Brasil.
AMEAÇAS À PRIVACIDADE, À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AO LIVRE PENSAMENTO
O argumento de que o Registro Civil é porta de entrada para direitos do cidadão é tão utilizado quanto o argumento da luta contra as fraudes. Travestida de combate à corrupção, a coleta de dados recorrente é normal e pode expor inclusive jovens que realizam o ENEM, por exemplo. A incapacidade do Estado de gerir números e desambiguar informações resulta em gastos com bases de dados que restam descuidadas, prontas para serem exploradas por data brokers e ataques maliciosos. A profusão de bases de dados centralizadas e seus comitês que prometem “segurança” é preocupante porque não só não resolvem o problema, mas tendem a complicar soluções futuras (além de custar caro). A falta do uso e envolvimento no desenvolvimento de padrões, a não exploração de tecnologias como APIs Web, por exemplo, e a completa apatia diante de tecnologias como blockchains são sinais de que o Governo está preso em um passado distante.
O caso do sistema prisional é outro exemplo: uma das únicas atividades que o brasileiro ainda pode exercer sem certidão de nascimento é ir preso. Nesse caso é interessante observar que a falta de registros é utilizada como desculpa para que o preso continue a cumprir pena sem ser julgado, ou mesmo antes do inquérito estar pronto para acusação. Porém, no ato da prisão são tomadas as digitais de todos os dedos das mãos, e o nome que o preso declara no ato, o que invalida o argumento de que a falta de registro de nascimento possa atrasar os cálculos do sujeito preso. Oras, se o preso já tem seus dados biométricos coletados no ato da entrada, não seria difícil efetuar consulta em outros bancos de dados do país para saber se as mesmas digitais já constam de sistemas prisionais. Se o preso já praticou algum crime violento, até seu DNA já foi coletado, coleta que também não foi discutida de modo apropriado, porém mostra que o sistema prisional brasileiro não carece de mais registros e sim sofre de racismo institucional e falta de uma administração competente.
A visão sobre registro civil e seus bancos de dados deve ser sistêmica. Pensar justamente que tipo de cruzamento o acesso à essas bases permite é tão importante como questionar a capacidade do Estado de assegurar que esses dados não serão utilizados para criar listas discriminatórias em casos extremos, como ditaduras, por exemplo. A partir de um nome é possível investigar informações que acabam não sendo de cunho público, e que se tomadas como tal podem indicar o andamento do país para um estado onde a vigilância pervasiva é a única forma de prevenção de crimes.
Ignorar também o potencial da Internet não só como forma de porta de entrada para dados que podem ser cruzados é desprezar o impacto que a mesma pode trazer para o benefício da sociedade como um todo. A descentralização da gestão dos dados, tema que tem sido debatido tanto em meio acadêmico quanto no meio empresarial, é uma seara a ser explorada também para o e-gov. Quando alguem pode determinar de modo ágil, fácil e não binário com qual gênero mais se identifica direto pela internet, por exemplo, a sociedade ganha não só desburocratizando um processo, mas empoderando seus cidadãos para quais os lugares querem ocupar socialmente. Desburocratizar a mudança de nomes, com a gestão direta pelo cidadão detentor do nome não só pode ser feito como também pode ajudar em discussões atualmente vistas com viés preconceituoso na maioria dos tribunais. A disputa pela oficialização do nome social, em casos de pessoas trans ou as que desejam trocar o primeiro nome por qualquer motivo, é extremamente factível com a ajuda da Internet. O processo de trocar de nome em casos semelhantes, onde a pessoa se sente prejudicada pelo nome, também seria beneficiado nesse caso. Por exemplo: se alguém se chama “Xerox da Silva” e quer trocar para “Maria da Silva”, não precisaria passar por anos de sistema judiciário para ter garantido o seu direito.
Como é uma questão de cunho privado, nada mais natural do que dar ao cidadão um processo mais rápido e justo, sem burocracia, para determinar também se deseja ou não ser chamado pelo nome que lhe foi dado no ato do nascimento. Retirar essas restrições pode levar a uma sociedade mais justa.
A discussão sobre o anonimato também deve avançar no Brasil. A criação de bancos de dados visando facilitar a vida das pessoas digitalizando a burocracia serve também à implementação de políticas de vigilância extremas. Ao mesmo tempo em que cartórios são integrados digitalmente para fornecer certidões de registros de modo ágil, sistemas como o SISBIN da ABIN, que promovem a troca de dados indiscriminada entre pessoas por trás de instituições, são criados e regulamentados em lei como se a única forma de combate ao crime fosse a vigilância em massa. Essa visão coloca o cidadão comum como suspeito até que seja comprovado o contrário. Por causa disso, o anonimato deve ser possível constitucionalmente e regulamentado, ainda que seja restrito à ambientes de internet. Ainda que o cidadão esteja identificado para o Estado, é imprescindível que a Internet se mantenha longe da publicação de dados coletados no governo, especialmente certidões de nascimento.
Dentro desse contexto, também é discutível a política de nomes reais de plataformas como o Facebook, por exemplo. O usuário de internet deve ter o direito de utilizar as plataformas conservando sua identidade da maneira que quiser, e o governo deve agir como protetor de seus direitos, intervindo em exigências que coloquem cidadãos em risco, principalmente jovens e adolescentes.
O nome civil é a senha para a descoberta de características e informações pessoais, muitas vezes privadas, que deveriam ser restritas apenas ao cidadão e ao governo, tais como dados de saúde. O nome é também o caminho para o relacionamento do cidadão com o Estado, e, se público, combinado com outros dados, é um facilitador de fraudes. A Internet provocou transformações profundas no modo como vivemos e nos relacionamos, e a mudança no modo como enxergamos o caráter público dos nomes civis é algo que também deve ser considerado, uma vez que a proteção da privacidade é de suma importância para o desenvolvimento de uma sociedade democrática.
*Este post pertence à uma série artigos sobre métodos de identificação e privacidade no Brasil. Este é um trabalho da Coding Rights + Privacy Latam, em um projeto da Privacy International