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As crianças estão na Internet e é preciso adaptá-la

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Por Marina Pita, do Instituto Alana | #Boletim17 — Antivigilância

Aos poucos, a cultura adultocêntrica começa abrir espaço para a percepção de que a Internet e as tecnologias da informação e comunicação estão presentes — e muito — na vida de crianças e adolescentes. A pesquisa TIC Kids Online Brasil 20161 estima que oito em cada dez crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos são usuários de Internet, o que corresponde a 24,3 milhões de indivíduos, quase um quarto total de usuários de internet do país2. Destes, 86% mantinham perfis em redes sociais e 91% faziam uso de dispositivos móveis.

Mas se as crianças e adolescentes já são parcela significativa dos usuários de TICs, a criação de produtos e serviços desenhados para elas, considerando o seu bem-estar e melhor interesse, ainda engatinha. Em geral, as crianças são usuários de soluções desenvolvidas por adultos, considerando as necessidades de seus pares e de negócios. Assim, raramente as especificidades de pessoas em fase peculiar de desenvolvimento e as necessidades decorrentes desta condição estão presentes nos equipamentos e plataformas usadas por esse público.

Essa ideia, de que hoje há centenas de milhões de crianças e adolescentes usando ferramentas de tecnologias da informação e comunicações inadequadas — seja por falta de conhecimento dos desenvolvedores ou mesmo por má intenção dos criadores -, é bastante simples, mas tem um potencial enorme de sensibilizar para o desafio que temos pela frente para garantir os direitos deste grupo de indivíduos hipervulnerável. Em um mundo cada vez mais mediado por tecnologias digitais e orientado pelo fluxo intenso de dados, como assegurar acessibilidade, minimizar riscos e ampliar e democratizar oportunidades sem que estejam todos conscientes desta necessidade e responsabilidade?

A título de exemplo, recentemente mães blogueiras e ativistas digitais3 colocaram em evidência o papel de estímulo ao consumo infantil que alguns influenciadores digitais vêm cumprindo, quando, em março, divulgaram que Felipe Neto, um dos maiores YouTubers do Brasil, participou de um painel cujo título era “Lugar de criança é no supermercado: O Poder de Compras do Público Infanto-Juvenil”, em evento promovido por supermercadistas. Na sequência, uma série de mães, pais e responsáveis saíram do armário4 para dizer que vídeos online têm estimulado os filhos a comportamentos estranhos, como de querer consumir produtos alimentícios de valor nutricional duvidoso, e de demandar mais e mais brinquedos, depois de assistirem vídeos em que brinquedos são abertos e explorados, os chamados vídeos de unboxing5.

A exposição de crianças e adolescentes à publicidade na Internet merece mesmo atenção. A pesquisa TIC Kids Online mostra que, em 2016, embora a televisão continue sendo o principal meio de exposição à publicidade ou propaganda (80%), cresceu o percentual dos usuários de Internet de 11 a 17 anos que tiveram contato com conteúdos mercadológicos em sites de vídeos: 69%.

E o tema vem gerando movimentações. Recentemente, o Facebook anunciou, nos Estados Unidos, uma nova política para a publicidade de acessórios de armas, que veda sua exposição a pessoas com menos de 18 anos de idade6.

Mas a questão central ainda está na publicidade camuflada, que, se é considerada abusiva e ilegal quando direcionada a adultos, é ainda mais inaceitável quando o alvo são as crianças, muitas vezes incapazes de diferenciar o conteúdo da comunicação mercadológica e ainda imaturas para analisar criticamente o caráter persuasivo das mesmas.

“A crescente popularidade dos youtubers mirins perante sua audiência e o impacto que exercem entre seus pares, por meio da construção de uma relação de proximidade e intimidade, atraíram a atenção do mercado, que vê esse espaço como facilitador do direcionamento de publicidade ao público infantil. Diversas empresas, aproveitando-se da hipervulnerabilidade — tanto da criança youtuber como da criança espectadora — passaram a enviar seus produtos a esses influenciadores digitais para que eles os desembrulhassem, apresentassem, testassem e os divulgassem em suas redes sociais”, aponta a advogada do programa Criança e Consumo, do Alana, Livia Cataruzzi7.

Nos Estados Unidos, a prática da publicidade camuflada em redes sociais tem se mostrado uma preocupação crescente da Federal Trade Comission. Em abril de 2017, o órgão enviou, com fim educativo, mais de 90 cartas a proprietários de perfis e a anunciantes, lembrando-lhes que, ao divulgar produtos e/ou serviços, devem fazê-lo de maneira clara e inequívoca8.

Mas, no caso de crianças, deixar evidente que determinado conteúdo é publicitário não é suficiente. É preciso barrar a publicidade direcionada a este público, conforme determina a legislação existente no Brasil. O direcionamento de publicidade ao indivíduo com menos de 12 anos é proibido, pois tira proveito da peculiar condição de desenvolvimento da criança para persuadir-lhe ao consumo. No Brasil, tal entendimento se consubstancia numa leitura sistemática do disposto no artigo 227, da Constituição Federal de 1988; no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/1990); e, notadamente, no artigo 37, §2° do Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/1990), que caracteriza como abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”.

O fim das práticas de assédio e exploração comercial de crianças pelo direcionamento de publicidade é algo que precisa ser urgentemente conquistado. Mas, no contexto atual de desenvolvimento tecnológico e socioeconômico, a exploração comercial de crianças e adolescentes no ambiente online pode se dar também a partir da coleta e tratamento de dados pessoais. É fundamental assegurar a crianças e adolescentes o direito de acesso ao conhecimento e informação, o que, nos dias de hoje, significa o acesso à Internet. Mas, para não violar o direito à privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade, este acesso não pode ser condicionado à lógica predatória de coleta de dados, com risco potencial à segurança e com efeitos no direito à privacidade, ao desenvolvimento sadio e à liberdade.

É injusto, antiético e ilegal que o direito de crianças e adolescentes ao desenvolvimento livre da personalidade possa ser cerceado utilizando seus rastros digitais. Não é razoável tampouco que eles tenham seus horizontes limitados pelo que parecem dizer esses dados acerca do que já conhecem, gostam e buscam online. É preciso garantir que a infância e a adolescência não sejam enquadradas e classificadas por modelos artificiais e algorítmicos opacos, que possam afetar seu acesso a serviços, como saúde e educação ou, ainda, a oportunidades sociais e profissionais.

Estamos ainda nos primórdios da sociedade orientada por dados digitais e soluções de Inteligência Artificial ainda engatinham, de forma que o princípio da preocupação é o melhor método para evitar efeitos perversos de uso de rastros digitais por crianças e adolescentes, com implicações presentes e futuras.

Marina Pita é jornalista, especializada em tecnologias da informação e comunicação. Atualmente é pesquisadora de proteção de dados do programa Prioridade Absoluta, do Alana.