A exploração de dados na Internet para fins eleitorais na América Latina
#América Latina #blogpost #desinformação #eleições #proteção de dadosPor Paz Peña*, editora convidada | Boletim Antivigilância n.16
“Foi erro meu. E eu sinto muito.” Foi assim que Mark Zuckerberg, presidente e fundador do Facebook, referiu-se aos abusos cometidos pela Cambridge Analytica, que usou os dados de milhões de usuários da rede social para a campanha eleitoral do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Tais declarações foram feitas por Zuckerberg em audiência solicitada pelo senado norte-americano, poucas semanas após o escândalo ter vindo à tona. Até o momento, sabemos que a Cambridge Analytica teve acesso aos dados de 87 milhões de usuárias e usuários do Facebook sem o conhecimento destes, razão pela qual a empresa de Zuckerberg a excluiu de sua plataforma no mês passado.
O depoimento de Zuckerberg deixou um sabor amargo. Entre frases evasivas e repetidas como mantra, ele nunca aceitou abertamente o que muitos senadores o fizeram ver: que o fato de as e os usuários terem certo controle sobre “as configurações de privacidade” não significa que a empresa tenha como compromisso a proteção dos dados pessoais e confidenciais das pessoas.
O modelo de negócios do Facebook é perfilar as pessoas para vender propaganda. Para fazer isso, ele monitora não apenas os dados da sua plataforma, mas também toda a navegação dos indivíduos na Internet, sejam estes usuários ou não dessa rede social. Além disso, o Facebook compra outras bases de dados de data brokers para, então, complementar esses perfis e vender publicidade específica. Isso é validado por Termos de Serviço que são incompreensíveis para uma pessoa comum, tremendamente vagos em suas definições, e que também não oferecem nenhuma possibilidade de negociação e nem mesmo são uma opção para quem não é usuário da rede social. É preciso acrescentar a isso o fato de que o algoritmo do Facebook, sem a menor transparência e sem nenhuma ação das pessoas, decide o que vemos e o que nos é ocultado.
Em outras palavras: em um ecossistema opaco, criado para sugar dados indiscriminadamente e traçar perfis irreais das pessoas, muitas vezes sem o consentimento destas, não é nada difícil que empresas como a Cambridge Analytica (que no momento do fechamento desta edição anunciou o encerramento de suas atividades) também explorem esses dados, porém para fins eleitorais.
Dizem que a exploração de dados, ou — mais especificamente neste caso — o uso de big data em redes sociais, permite conhecer os interesses de milhões de pessoas. Estes últimos, combinados a várias outras bases de dados (que podem ser compradas de data brokers ou que estão disponíveis publicamente), permitem saber tudo, classificar tudo, prever tudo. Algo como “nós somos os dados que deixamos”. No caso da exploração de dados para uso eleitoral, a ideia é que essas informações permitam uma classificação minuciosa dos usuários e o envio de mensagens que reafirmem a posição destes e, dessa maneira, garantam seu voto. Alguns qualificaram isso como populismo puro: dizer ao povo o que o povo quer ouvir. Outros acreditam que significa o fim da deliberação democrática, pois estamos imersos em bolhas (des)informativas que apenas reafirmam nossas posições.
É curioso, isso sim, que esse tipo de “fim da democracia, como a conhecemos” seja atribuído unicamente ao poder das redes sociais (e somente depois que Trump passou a fazer parte delas, pois uma campanha similar de Obama em 2008 ainda é considerada pioneira, no melhor dos sentidos). Diz-se que, em sociedades politicamente polarizadas, a exploração de dados para fins eleitorais pode ser a gota d’água. Mas, se isso é verdade, o problema é apenas a manipulação nas redes sociais ou um sistema político e econômico que chegou a um estado de polarização e violência devido a diversos fatores?
Se alguém se beneficia dessa visão a-histórica — e refiro-me a embolsar dólares e mais dólares — são empresas como o Facebook e a Cambridge Analytica que, resguardadas pelo que é smart e mensurável como sinônimo de objetividade, reduzem a atuação humana à coleta e interpretação de dados, que muitas vezes sequer suportam uma revisão rápida em sua metodologia. Precisamos ser claros. Não. Nem todos os eleitores estão conectados ou dão valor especial à Internet; não, nem todas as pessoas formam sua visão política a partir de uma única fonte — as redes sociais; e, ainda mais grave, pois significa um retrocesso aos anos 30 na teoria da comunicação: não, não somos caixas vazias, passivas e previsíveis, no sentido de que basta apenas um input para que se possa saber exatamente que output esperar de nós.
Nesse panorama, e em anos com eleições importantes para a América Latina, o que podemos esperar da exploração de dados da Internet para fins eleitorais? Vários são os traços comuns, como se pode ver nesta edição do Boletim Antivigilância, na qual especialistas do México, Colômbia, Argentina, Brasil e Chile oferecem seu testemunho. Primeiro, no entanto, há pouquíssimas informações sobre empresas como a Cambridge Analytica em nosso continente; segundo, os marcos legais de proteção de dados e regulação da publicidade eleitoral estão completamente ultrapassados com relação às novas tecnologias; e, terceiro, parece que nos países onde há menos estabilidade política e violações claras aos direitos humanos (como México e Brasil) é onde mais existe o temor de manipulação informativa nas redes sociais, não como um ato separado e único, mas em um tandem histórico com meios de comunicação tradicionais e outras campanhas on-line que vêm de longa data, como a presença de bots políticos e ataques coordenados à dissidência.
Nesse sentido, Renata Ávila lança perguntas regionais que serão chave no futuro próximo, como, por exemplo: se as plataformas onde são despejadas as campanhas eleitorais estão administradas por algoritmos opacos para o público, como as e os cidadãos de países como os latinos podem exercer uma fiscalização cidadã constante do cumprimento de suas leis eleitorais? Que papel cumprirão, então, as missões eleitorais? “O problema central é como atacar esses problemas emergentes e ao mesmo tempo respeitar o direito ao anonimato, a liberdade de expressão e a proibição da censura prévia, o que, combinado com a pouca prestação de contas por parte das empresas privadas, transforma essas organizações em fortalezas impenetráveis”, afirma Ávila.
Ainda assim, o escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica deve ser também uma oportunidade para refletir sobre como se constroem categorias sociais com base no big data. Hang Do Thi Duc, cocriadora do Data Selfie, no artigo que escreveu para o Boletim Antivigilância, mostra que o Facebook baseia seu perfil de personalidade nas categorias OCEAN/Big 5, ou seja, abertura a experiências, responsabilidade, extroversão, amabilidade e instabilidade emocional. É o que somos para o Facebook. E isso faz com que nos perguntemos: Quem tem o poder de determinar essa classificação e porque as pessoas deveriam se submeter a ela? Mas, ainda mais importante: que ação política nós temos como indivíduos — latino-americanos, especificamente — para resistir a esses tipos de classificação de controle na era do big data?
A fim de revelar o que ocorre nessas verdadeiras “caixas pretas” nas quais as plataformas mais importantes da Internet se transformaram, Joana Varon e Lucas Teixeira fazem uma análise das ferramentas que diversos ativistas e coletivos na área da programação, das ciências sociais e da arte projetaram para conter e gerar uma consciência sobre a exploração de dados das e dos usuários, sobretudo em época de eleições. Isso também nos faz refletir sobre como tornar massivas essas medidas de mitigação e como seguir pressionando para obter uma mudança de paradigma no modelo de negócios das plataformas e governos mais dispostos a defender a privacidade das pessoas.
Nesta edição especial do Boletim Antivigilância sobre exploração de dados na Internet para fins eleitorais na América Latina, esperamos fornecer uma visão local e regional que vá além de possíveis questionamentos norte-americanos e ingleses sobre a relação do Facebook e da Cambridge Analytica, e que nos leve a contextualizar o big data e os processos eleitorais em nossos países a partir de nossas realidades históricas.
*Paz Peña é do Chile e atua como consultora em Direitos Humanos, tecnologia e gênero.