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Sabe como foi feito o bloqueio do Telegram no Brasil?*

#acesso à internet #blogpost #regulação de plataformas

Análise técnica dos parceiros da rede do OONI detalham como cada operadora procedeu

Por Arturo Filastò (OONI), Maria Xynou (OONI), Simone Basso (OONI), Felipe Octaviano Delgado Busnello (Pesquisador Independente)

* Texto original em Inglês publicado no site do OONI (Open Observatory of Network Interference) em 28 de abril. Depois da publicação deste relatório, houve duas ordens judiciais de suspensão do Telegram no âmbito do inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal que investiga a plataforma por campanha abusiva contra o Projeto de Lei 2630 (PL das Fake News). A primeira ocorreu no dia 10 de maio, quando o TSF determinou a suspensão do Telegram por 72 horas caso o aplicativo não removesse a mensagem que atacava o PL 2630 enviada em massa às vésperas da votação na Câmara dos Deputados. Já a segunda determinação de suspensão aconteceu no dia 26 de maio, quando o ministro Alexandre de Moraes ordenou a suspensão por 48 horas caso o Telegram não indicasse representantes legais no país. Em ambas as ocasiões, a plataforma cumpriu as ordens do STF e não foi suspensa de fato.

No dia 26 de abril de 2023, o Brasil começou a bloquear o acesso ao Telegram. No mesmo dia, um juiz federal no Brasil teria ordenado a suspensão temporária do Telegram em resposta à alegada falha do serviço de mensagens em compartilhar todas as informações solicitadas pela polícia sobre grupos de bate-papo neonazistas. Essas informações foram solicitadas como parte de uma investigação sobre ataques a escolas, enquanto as autoridades brasileiras investigam grupos neonazistas que, acredita-se, tenham usado o Telegram para incitar tais ataques. No entanto, o CEO do Telegram afirmou em seu canal que era impossível para a plataforma cumprir a ordem judicial, pois não seria viável a obtenção dos dados solicitados pelo juiz.

A partir de 26 de abril de 2023, os dados do Open Observatory of Network Interference (OONI) mostram que alguns provedores de serviços de internet (ISPs) no Brasil começaram a bloquear o acesso ao Telegram. Neste relatório, compartilhamos dados do OONI coletados no Brasil, documentando o bloqueio.

Contexto

Em 19 de abril de 2023, um juiz federal no Brasil emitiu uma decisão ordenando ao Telegram que fornecesse ao tribunal as informações solicitadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. As informações solicitadas incluíam os nomes, números oficiais de identificação, fotos de perfil, status de perfil, endereços de e-mail, endereços físicos, dados bancários, informações de cartão de crédito, dispositivos vinculados (incluindo IMEI), números de telefone confiáveis ​​para autenticação de dois fatores e registros de criação de conta (incluindo endereços IP, porta lógica, data e hora) de todos os usuários vinculados ao canal “Movimento Anti-Semita Brasileiro” e a um grupo de chat neonazista chamado “Frente Anti-Semita”. No caso de descumprimento da ordem, o juiz estabeleceu uma multa diária de R$100.000,00 (aproximadamente 20 mil dólares) para a plataforma, ou 5% de sua receita bruta anual no Brasil, o que for menor.

O Telegram respondeu argumentando que, como os grupos encerraram suas atividades alguns meses antes da ordem, eles não seriam capazes de fornecer ao tribunal todas as informações solicitadas. A plataforma conseguiu identificar apenas o número do usuário, o número de telefone e a data de criação do canal, pois isso já havia sido solicitado pela Polícia Federal em outro caso, enquanto ainda estava ativo. Em relação ao grupo, o Telegram afirmou que não seria possível recuperar nenhuma informação pessoal, a menos que o número de telefone do administrador fosse fornecido a eles.

No entanto, a Polícia Federal afirmou que as informações não eram suficientes. O juiz ficou ao lado das instituições públicas, observou que o cumprimento da ordem tinha sido precário e estipulou que as informações fornecidas pelo Telegram não atendiam à ordem. Em 26 de abril de 2023, o juiz determinou a suspensão temporária do serviço do Telegram no Brasil. Essa decisão foi encaminhada a vários Provedores de Serviço de Internet (ISPs) brasileiros.

A justificativa para a decisão é que os provedores de aplicativos na internet, de acordo com a Lei do Marco Civil da Internet, devem armazenar todos os dados por um período de seis meses. Embora o Telegram alegasse que o grupo e o canal já haviam sido excluídos por mais tempo do que o exigido para manter os dados, segundo o juiz, o Telegram não comprovou que esse tempo havia decorrido e, portanto, não provou ter se desobrigado da obrigação legal de manter os dados.

A partir de 26 de abril de 2023, vários ISPs no Brasil começaram a bloquear o acesso ao Telegram. Membros da comunidade do Brasil compartilharam dados do OONI sobre o bloqueio em suas redes. Gustavo Gus, do Projeto Tor, por exemplo, relatou o bloqueio do Telegram no Brasil ao compartilhar dados relevantes do OONI nas redes sociais.

Como parte deste relatório, analisamos os dados do OONI coletados no Brasil para documentar o bloqueio do Telegram.

Métodos

Fundada em 2012, o Observatório Aberto de Interferência na Rede (Open Observatory of Network Interference – OONI) é um projeto de software livre que tem como objetivo documentar a censura na internet ao redor do mundo. Para isso, desenvolvemos aplicativos de software livre (OONI Probe) que incluem experimentos projetados para medir diversas formas de censura na internet, incluindo o bloqueio do Telegram. Esses experimentos são executados por usuários do OONI Probe em cerca de 160 países (incluindo o Brasil) todos os meses, testando suas redes para detectar o bloqueio de sites e aplicativos. Para aumentar a transparência da censura na internet, publicamos os resultados dos testes do OONI Probe (“medições”) de todo o mundo como dados abertos em tempo real.

Para investigar o bloqueio do Telegram no Brasil, analisamos medições recentes coletadas do teste do OONI Probe no Telegram no país. O experimento do OONI Probe no Telegram foi projetado para medir a acessibilidade do aplicativo e da versão web do Telegram dentro de uma rede testada.

Mais especificamente, o teste tenta estabelecer uma conexão TCP com os pontos de acesso (DCs) do Telegram e realizar uma solicitação HTTP POST, bem como uma solicitação HTTPS GET para a versão web do Telegram (web.telegram.org) a partir do ponto de vista do usuário. Os resultados do teste são anotados como “anômalos” (indicando bloqueio potencial) quando as conexões com todos os pontos de acesso definidos na especificação do teste falham. Reconhecemos que isso pode potencialmente apresentar uma limitação metodológica, pois é possível que os ISPs bloqueiem apenas alguns pontos de extremidade, mas não todos, e nesse caso, o resultado da medição ainda seria anotado como “bem-sucedido” (pois requer que as conexões com todos os pontos de extremidade testados falhem para que o resultado seja anotado como “anômalo”). Portanto, nosso objetivo é revisar nossas heurísticas para melhorar a classificação automatizada dos resultados.

Com base nessa metodologia, é provável que o aplicativo do Telegram esteja bloqueado se as conexões TCP com todos os pontos de acesso testados falharem e/ou se as solicitações HTTP POST para os pontos de acesso do Telegram não receberem uma resposta dos servidores do OONI. É provável que a versão web do Telegram (web.telegram.org) esteja bloqueada se as solicitações HTTPS GET para web.telegram.org não receberem uma resposta consistente dos servidores do OONI.

No entanto, falsos positivos podem ocorrer por diversos motivos, como falhas de rede transitórias ou alterações na infraestrutura do Telegram que afetam a execução do experimento do OONI Probe no Telegram. Portanto, analisamos as medições do Telegram feitas pelo OONI em conjunto com o objetivo de avaliar se o teste apresenta um volume relativamente grande de anomalias (em comparação com medições bem-sucedidas) de cada rede testada durante o período de interesse (neste caso, comparando as medições do Telegram coletadas a partir de 26 de abril de 2023 com medições anteriores do Telegram coletadas no Brasil ao longo do último mês). Esse procedimento é realizado em todas as medições do Telegram coletadas pelo OONI de todas as redes testadas no Brasil.

Embora um volume comparativamente grande de medições anômalas (em comparação com medições anteriores) possa indicar o bloqueio do Telegram, é necessário inspecionar os dados brutos das medições para descartar falsos positivos, entender por que as anomalias ocorreram e caracterizar o possível bloqueio. Para essa análise (mais avançada), utilizamos nossa ferramenta de análise de dados do OONI, que nos permite analisar de forma mais eficaz os dados brutos das medições, agregar com base nos tipos de falhas e caracterizar o bloqueio.

Resultados

A partir de 27 de abril de 2023, os testes do OONI Probe no Telegram no Brasil começaram a apresentar um aumento nas medições anômalas, conforme ilustrado no gráfico a seguir.

Gráfico: Testes do OONI Probe no Telegram em 378 ASN no Brasil entre 29 de março de 2023 e 28 de abril de 2023 (fonte: OONI MAT).


O gráfico acima agrupa a cobertura de medição do Telegram feita pelo OONI a partir de 378 ASNs no Brasil entre 29 de março de 2023 e 28 de abril de 2023. As medições bem-sucedidas do Telegram (indicando acessibilidade do Telegram) são anotadas como “OK” (verde), enquanto as medições que apresentam anomalias (sinais de bloqueio potencial) são anotadas como “Anomalia” (laranja).

Como é evidente, quase todas as medições no último mês foram bem-sucedidas, e no gráfico acima, só observamos um aumento significativo nas medições anômalas a partir de 27 de abril de 2023 em diante (o que coincide com o momento do bloqueio relatado). O volume comparativamente grande de medições anômalas (em comparação com as medições anteriores), juntamente com o momento das anomalias e o fato de persistirem no dia seguinte, indica um sinal de bloqueio do Telegram no Brasil. No entanto, observamos também que algumas medições (em 27 e 28 de abril de 2023) foram bem-sucedidas, indicando que, se o Telegram estiver bloqueado, pode não estar bloqueado em todas as redes testadas.

Uma análise detalhada por ASN da cobertura de medição sugere que o Telegram não está bloqueado em todas as redes testadas no Brasil. Os dados do OONI, por exemplo, mostram que o Telegram estava acessível quando testado no AS262374 em 28 de abril de 2023, conforme as medições relevantes que mostram que as conexões com os pontos de extremidade do Telegram testados foram bem-sucedidas. No entanto, é possível que o bloqueio tenha sido implementado para pontos de extremidade do Telegram que não estão atualmente incluídos no experimento do OONI Probe Telegram. Além disso, o fato de o experimento do OONI Probe Telegram exigir que todos os pontos de extremidade testados falhem para serem anotados como “anômalos” significa que é possível que, nos casos em que apenas alguns pontos de extremidade são bloqueados (em vez de todos), essas medições sejam anotadas como “bem-sucedidas”. Implementamos essa heurística porque, quando escrevemos o experimento, era suficiente que um único ponto de extremidade do centro de dados fosse acessível para o aplicativo do Telegram funcionar conforme o esperado. Como mencionado anteriormente, podemos precisar revisar nossas heurísticas.

O gráfico a seguir mostra as ASNs que apresentaram o maior volume de anomalias (e, portanto, os sinais mais fortes de bloqueio) a partir dos testes do OONI Probe no Telegram no Brasil.

Gráfico: ASNs no Brasil onde os testes do OONI Probe no Telegram apresentaram o maior volume de anomalias entre 29 de março de 2023 e 28 de abril de 2023 (fonte: OONI MAT).

Ao realizar uma análise mais detalhada usando nossa ferramenta de análise de dados do OONI, podemos observar os testes de acessibilidade do Telegram em cada ponto de extremidade TCP. No gráfico abaixo, podemos ver as observações de “TCP connect”. Cada linha representa um ponto de extremidade TCP distinto (um par de IP e porta), enquanto as colunas representam nomes de redes distintas (o mesmo nome de rede pode ser usado por vários números de AS). Limitamos este gráfico a algumas redes selecionadas, focando nas mais populares, bem como aquelas que tiveram cobertura suficiente durante o período de medição, destacando algumas diferenças no bloqueio de pontos de extremidade específicos.

Gráfico: Bloqueio em pontos de extremidade selecionados do Telegram em alguns provedores de serviços de Internet (ISPs) brasileiros. Cada linha do gráfico mostra o status de um ponto de extremidade específico e cada coluna representa um ISP específico (fonte: ferramenta de dados do OONI).

O que podemos observar no gráfico acima é que a maioria das redes bloqueia todos os pontos de extremidade a partir de aproximadamente 27 de abril de 2023. No entanto, em alguns casos, o provedor não bloqueou todos os pontos de extremidade medidos de forma efetiva, mas escolheu bloquear apenas alguns deles. Por exemplo, na TIM (AS26615), os quatro principais pontos de extremidade não estão bloqueados. Uma vez que observamos o bloqueio consistente do endereço IP independentemente da porta, é plausível especular que o bloqueio depende do endereço IP, e não do endereço IP e da porta. Na Ligga Telecomunicações S.A. (AS14868), observamos diferentes pontos de extremidade acessíveis (do dia 7 ao dia 10 de abril de 2023 no gráfico acima). Isso nos leva a acreditar que não há compartilhamento de informações entre os provedores sobre os alvos do bloqueio, e cada provedor escolhe autonomamente o que bloquear. Na Unifique Telecomunicações SA (AS28343), não observamos evidências de bloqueio.

Dentro de cada rede, vemos que o bloqueio ocorre ao mesmo tempo para todos os pontos de extremidade, sugerindo que o bloqueio foi implementado simultaneamente na mesma rede.

Ao analisar o horário de bloqueio de um ponto de extremidade específico em diferentes provedores, podemos observar como o horário em que o bloqueio começou varia de provedor para provedor.

Gráfico: Bloqueio de um ponto de extremidade específico do Telegram para provedores distintos. No gráfico, podemos ver como cada provedor iniciou o bloqueio em momentos diferentes (fonte: ferramenta/dados do OONI).

Como é evidente pelo gráfico acima, a TIM foi a primeira provedora a implementar o bloqueio por volta das 23:00 UTC do dia 26 de abril de 2023, seguida pela Telefônica Brasil uma hora depois, e pela Claro na hora seguinte. Algumas horas mais tarde, por volta das 14:00 UTC do dia 27 de abril de 2023, a V tal (também conhecida como Oi) começou a bloquear o Telegram, seguida uma hora depois pela Ligga.

Conclusão

Os dados do OONI mostram que alguns provedores de serviços de Internet (ISPs) no Brasil imediatamente cumpriram a decisão do juiz federal de suspender o Telegram, uma vez que o bloqueio do Telegram começou em 26 de abril de 2023. No entanto, o bloqueio não foi implementado por todos os ISPs no Brasil, nem da mesma forma. Alguns provedores bloquearam o acesso a todos os pontos de extremidade testados do Telegram, enquanto outros bloquearam apenas alguns deles. Isso sugere falta de coordenação entre os provedores e que cada ISP implementou o bloqueio de forma autônoma.

Esta não é a primeira vez que o acesso a um serviço de mensagens popular é bloqueado no Brasil devido à falta de cumprimento das solicitações das autoridades de fornecer dados de usuários. O WhatsApp, por exemplo, foi temporariamente bloqueado no Brasil (em dezembro de 2015 e maio de 2016) devido à falta de cumprimento de tais solicitações.

Você pode continuar monitorando o bloqueio do Telegram no Brasil por meio dos dados do OONI, que são publicados automaticamente em tempo real. Agradecemos aos usuários do OONI Probe no Brasil que contribuíram com medições, apoiando este estudo.